Baile Perfumado: o contemporâneo no cinema nordestino (versão em pdf)
Marise Berta

Mestra em Artes Visuais -UFBA e Doutoranda em Artes Cênicas -UFBA. Professora e Coordenadora do curso de Cinema e Vídeo – FTC.

SINOPSE
O filme apresenta a trajetória de Benjamin Abrahão, um mascate libanês que viveu com intensidade a movimentação dos anos 30 no nordeste brasileiro. Após ter sido, por dez anos, secretário particular de Padre Cícero vivencia a agitação política da região, aproxima-se dos seus protagonistas e articula uma rede de contatos que lhe permitiu filmar as únicas imagens de Lampião e seu bando. O filme, que registra a vida no Cangaço [1] , é proibido pelo governo de Getúlio Vargas. Os desdobramentos da censura resultam no isolamento de Abrahão e no seu assassinato.

COMENTÁRIO CRÍTICO
Mais de 50 títulos de filmes de cangaço são listados em “Cangaço – o Nordestern no Cinema Brasileiro” [2] , números que comprovam o interesse e a presença marcante do tema no nosso cinema. O Cangaço foi abordado no cinema brasileiro em diferentes momentos e de várias perspectivas. O tema também mobilizou o interesse de outras formas da criação cultural. A literatura, o teatro, a música, as artes plásticas, a história e as ciências sociais incursionaram neste território por meio de investigação estética e de pesquisa. A saga dos cangaceiros fertilizou um rico acervo de obras e reproduziu a história dos seus feitos sob diversas perspectivas e representações que o imaginário popular e a sociologia ajudaram a formular. No cinema, décadas de exercício em filmes de curtas, médias e longas-metragens, ficções e documentários instauraram o cangaço como a nossa tradução do western, consolidado gênero americano.

Em meados da década de 90 com a “retomada” [3] temas anteriormente tratados pelo cinema brasileiro passam por um momento de revisão. A produção audiovisual é alavancada configurando-se um processo de continuidade de realização. Busca-se a originalidade através do domínio da linguagem, da qualidade técnica e do bom nível estético. Baile Perfumado (1996) está inserido nessa nova configuração do cinema brasileiro. Primeiro longa-metragem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, realizado em Pernambuco, redireciona o olhar do país para o cinema produzido na região, que não empresta apenas o seu cenário, mas assina a autoria da sua expressão visual. Este filme, junto a outros longas e curtas metragens realizados nos anos 90 no Nordeste, permite cotejar um conjunto de obras que estabelecem um novo eixo de produção e delimitam o seu espaço simbólico na cinematografia nacional [4] .

Sob a égide das novas formas que instauram o contemporâneo como lugar de experimentação e concepção da linguagem e permite o trânsito entre imagens híbridas e múltiplas, Baile Perfumado aponta para a estética da fragmentação, que denota uma certa tendência a compor a estrutura narrativa em fragmentos sucessivos ou simultâneos. Filme de dupla direção [5] , concebido em sintonia com o seu tempo em diálogo aberto com a ruptura da linguagem ao declarar a opção pela não-linearidade na constituição da sua estrutura narrativa logo na primeira seqüência. O filme inicia-se com um virtuoso plano-sequência [6] , feito em câmara na mão, com duração de três minutos. O plano começa com a câmera saindo do rosto de Padre Cícero e movimentando-se para trás, saindo do quarto, colocando no quadro, de um lado o médico e, do outro, Benjamin Abrahão e algumas beatas que acompanham a agonia do padre em seu leito de morte. A câmara acompanha Benjamin que deixa o quarto do padre, e segue pelo corredor descrevendo o ambiente até chegar em um quarto em que duas mulheres acendem velas. Neste momento há uma mudança de tempo, toda a movimentação, aparentemente em perfeita unidade de tempo e espaço, revela um salto no tempo. Ao sair do quarto o padre ainda estava vivo. Ao entrar no quarto as mulheres estão de luto. Passando pelo corredor a câmera invade o quarto do libanês, que faz anotações em seu diário. A tarja preta em seu braço também indica o luto. Até aquele momento o som não é identificado, o som off não tem dono, Benjamin está o tempo inteiro sussurrando interiormente em voz alta, pensa em árabe. Ao fechar o seu diário a voz off também silencia marcando o encontro da voz e seu dono. Percebe-se que Abrahão é o narrador. Saindo do quarto a câmara o acompanha até chegar ao velório para despedir-se de Padre Cícero. Abrahão sai do quadro e a câmara percorre o quarto enquadrando as carpideiras que velam o morto e retorna ao seu ponto de partida: o close no rosto do padre.

A descrição deste plano-sequência inicial, onde nenhum corte se faz perceptível e em que tempos e espaços diferentes são apresentados no mesmo plano, é ilustrativa para indicar a constituição da narrativa do filme em que a continuidade composta de fragmentos se articula em possibilidades alternativas à visão clássica e introduz o olhar do espectador para o inusitado, advertindo-o para as cenas seguintes que serão reiteradas em todo o filme.

Em uma composição em que planos de curta duração com muita movimentação interna articulam-se entre si, a seqüência seguinte mostra a perseguição da volante do Tenente Lindalvo Rosa a Lampião e seu bando. A música sincopada de Chico Science, leia-se mangue-beat, atualiza a tradição na fusão que promove entre os ritmos tradicionais e o pop. A câmara inquieta sai na frente, persegue a ação, não espera a cena ser montada, mostrando a diversidade de planos. A iluminação acompanha essa construção e joga com os claros e escuros que ajudam a dar o tom à estrutura narrativa urdida por Paulo Caldas e Lírio Ferreira para dar conta da aventura de Benjamin Abrahão para filmar Lampião. A ficção funde-se ao documentário para contar a história do libanês que acreditava na máxima: “os inquietos vão conquistar o mundo”. Essa inquietação o conduz na direção de importantes acontecimentos da cena política nordestina da República Velha. Estava em Juazeiro do Norte quando Lampião recebeu a patente de Capitão e armas modernas para lutar contra a Coluna Prestes não cumprindo o compromisso, por perceber tratar-se de uma armadilha. Abrahão impressionado com Lampião insiste em desvendar aquele mito para o país e para todo o mundo e o veículo escolhido é novo e moderno: o cinema. A imagem da modernização é oferecida pela entrada do cinema no sertão, junto a tantos outros signos da modernidade: fotografia, jornal, rádio, telégrafo, automóvel e metralhadora. O mascate tornou-se produtor de imagens, conseguiu equipamentos, efetuou acordos com chefes políticos da região e contatos com coiteiros que garantiram o acesso a Lampião e seu bando. O que assistimos é Lampião fazendo cinema, assumindo o filme que até então era personagem. Fascinado pela possibilidade de construção da própria representação permite que juntamente com seus cangaceiros seja imortalizado através da câmara de Benjamin Abrahão, que livremente mostra Lampião, Maria Bonita e seus seguidores na plenitude do culto à aparência, exibindo anéis, armas, chapéus, medalhas, perfumes e bebidas. Filmou-os no flagrante da vida cotidiana, focalizando os mínimos detalhes do grupo: rezando, dançando, conversando, brincando com a câmera. A dimensão da preciosidade rara das imagens dessa parte da história do Nordeste brasileiro é dada pelo próprio material produzido tanto como pelo risco da empreitada, que resultou no cerco da polícia a Lampião, proibição e apreensão do filme e na morte de Benjamin Abrahão, eventos apresentados em ações paralelas estruturadas em vários núcleos narrativos que vão conduzindo o filme para esse desfecho.

Os cineastas pernambucanos ao atualizarem o registro das imagens do Cangaço produzidas por Benjamin Abrahão reinventam a cena simbólica de um passado mítico. Deslocados da inércia de uma estratificação histórica, inclusive em representações anteriores perpetradas pelo cinema, os personagens do mito reaparecem em um novo quadro de significações, em que a marca do contemporâneo está expressa. E o próprio pensamento dos homens inquietos do passado (Abrahão) orienta o movimento das imagens dos homens do presente (Caldas e Ferreira).


NOTAS
1- Nunca é demais lembrar que o termo Cangaço dá conta de um movimento social ocorrido no Nordeste brasileiro no início do século XX onde grupos armados chamados de cangaceiros constituíram o que o historiador marxista inglês Eric Hobsbawm chamou de banditismo social, influenciando diversos pesquisadores brasileiros, a exemplo de Maria Isaura Pereira de Queiroz e Rui Facó, que estudaram o Cangaço sob a perspectiva das condições sociais produzidas pela miséria, fome, latifúndio e coronelismo.

2- Coletânea de textos organizada pela jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano que propõe uma reflexão sobre o filme de cangaço.

3- O termo é usado em referência ao período em que a produção cinematográfica brasileira é revigorada por meio de novas leis de incentivo e que teve como resultado o aumento da produção e do número de espectadores.

4- “O filme colocou Recife na geografia cinematográfica do Brasil”, afirma Lírio Ferreira em matéria publicada na Gazeta do Povo on line de 09/06/2006.

5- Paulo Caldas, em depoimento dado ao programa Paulo Caldas e Marcelo Luna O baile pernambucano que compõe a coletânea de vídeos A linguagem do cinema, realização da Riofilme e do cineasta Geraldo Sarno, afirma que a dupla direção resulta da influência da cultura popular, dos emboladores, cantadores e repentistas.

6- Jacques Aumont e Michel Marie em Dicionário teórico e crítico de cinema. São Paulo: Papirus, 2003, p. 231, no verbete plano-sequência informam: “Como o termo indica, trata-se de um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma seqüência”

FICHA TÉCNICA
Título Baile Perfumado ( Brasil, 1999). Direção: Paulo Caldas e Lírio Ferreira; Roteiro: Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda; Direção de Fotografia: Paulo Jacinto dos Reis; Montagem: Vânia Debs; Música: Chico Science, Fred Zero Quatro, Sérgio “Siba” Veloso, Lúcio Maia e Paulo Rafael; Produção: Cláudio Assis. Elenco: Duda Mamberti, Luiz Carlos Vasconcelos, Chico Diaz, Jofre Soares, Cláudio Mamberti, Aramis Trindade,
Giovanna Gold, Jonas Melo.

SUGESTÕES DE LEITURA
CAETANO, Maria do Rosário (org.). Cangaço – o Nordestern no Cinema Brasileiro. Brasília: Avathar, 2005.
CALDAS, Paulo; FERREIRA, Lírio. A modernidade, a tradição e a vaidade de Lampião. Revista Cinemais, Rio de Janeiro, nº 4, mar./abr. 1977, p.7-38.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos e rebeldes primitivos - estudos sobre as formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
HOLLANDA, Firmino. Benjamin Abrahão. Fortaleza: edições Demócrito Rocha, 2000.
PINTO, Pedro P. A malfadada dívida do cineasta: Baile Perfumado, dez anos depois. Revista Sinopse, São Paulo, nº 11, ano VIII, set. 2006, p. 100-108.
QUEIROZ, Maria Isaura P. História do Cangaço. São Paulo: Global, 1997.

SITES
YAKHNI, Sarah. Baile Perfumado – Subversões do Cangaço. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br . Acesso em 20 de outubro de 2006.