Tiros em Columbine ou a decadência do império americano (versão em pdf)
Jorge Nóvoa
Historiador. Doutor e Professor do Departamento e Pós-Graduação em História e Ciências Sociais da UFBA, Coordenador da Oficina Cinema-História e Editor da revista O Olho da História (www.oolhodahistoria.ufba.br)

SINOPSE
Documentário que investiga a fascinação dos americanos pelas armas de fogo. Michael Moore, diretor e narrador do filme questiona a origem dessa cultura bélica e busca respostas visitando pequenas cidades dos Estados Unidos, onde a maior parte dos moradores guarda uma arma em casa. Entre essas cidades está Littleton, no Colorado, onde fica o colégio Columbine. Lá os adolescentes Dylan Klebold e Eric Harris pegaram as armas dos pais e mataram 14 estudantes e um professor no refeitório. Michael Moore também faz uma visita ao ator Charlton Heston, presidente da Associação Americana do Rifle.

COMENTÁRIO CRÍTICO
Da história do século XX uma infinidade de questões mais ou menos cruciais pode ser observada através das representações cinematográficas. Elas têm demonstrado também, através de suas dimensões estéticas, serem um excelente meio de revelação das contradições do mundo contemporâneo. Si a literatura e as artes em geral revelaram e revelam as contradições de suas épocas, o cinema também, tem uma capacidade ainda superior se levarmos em consideração o que se chama o seu efeito de realidade. O cinema amplia as possibilidades de representar o real. Em certos aspectos, nenhuma outra forma pode se equivaler a ele pelas potencialidades de expressão, artística ou outra. Por isso, cem anos de cinema capturou, e vem capturando, a vida nas suas mais variadas facetas objetivas e subjetivas e nos dando, através de seus discursos e representações, a ilusão de vivermos o real concreto, histórico. O século XX produziu assim um volume extraordinário de filmes que, simplesmente, encerra um verdadeiro laboratório de pesquisa sobre a subjetividade do mundo contemporâneo. Aí as questões culturais, éticas, psicológicas, sociais, históricas se apresentam das mais variadas formas.

Portanto, além das questões objetivas que o cinema vive e revive, pode nos interessar pelas questões subjetivas dessa "sobrevivência" e que ilustram também, tanto quanto as objetivas, o que se tem chamado de decadência da "civilização ocidental". Porém, o conteúdo objetivo desses dramas e tragédias de guerras, assassinatos, corrupções, manipulações, hipocrisia, são os impasses estruturais do sistema capitalista mundial, ilustrado de modo particular pela decadência do império americano. Tudo isso torna perversa e cínica no que diz respeito aos EUA a paranóia da permanentemente possível invasão estrangeira, vez que os ancestrais brancos reivindicados pelas classes dominantes do país foram, de fato, os invasores de uma terra antes habitada pelas inúmeras tribos indígenas cuja desaparição foi cultuada como uma religião e representada pelos filmes de cow boy, rendeu rios de dólares a Hollywood. Os dólares, as armas, a brancura dos ancestrais, a extrema direita, e a Ku Klux Khan, foram também cultuados pelo filme que enriqueceu seu diretor. Com O nascimento de uma nação,e com tal fortuna, David Grifft termina fundando os primeiros estúdios de Hollywood, se tornando, ao mesmo tempo, empresário e artista e um dos maiores difusores da idéia de que os brancos haviam construído um paraíso na América, até a chegada dos negros. Com certeza, a idéia do inimigo exterior não teve nele sua origem. Mas ele ajudou-a muito, junto com uma das maiores máquinas de produção de ideologia do século XX que foi Hollywood. E assim, o criador se torna escravo da criatura: os Estados Unidos da América não podem viver sem inimigos. A ironia perversa é que, paranoicamente, ele já existe internamente.

Porém, tudo tem o seu contrário. Na terra de Hollywood alguns autores adquiriram fama e prestígio (além de dinheiro também) fazendo filmes que mostram o reverso da medalha. Este é o caso de Michael Moore. Com Tiros em Columbine Moore recebeu o Oscar de melhor documentário e aproveitou seu discurso quando foi receber o prêmio, para criticar a eleição de Bush e a guerra dos EUA contra o Iraque. Ao fazer isto ele desafiou a exigência da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de não se falar na Guerra e na política e seu discurso foi transmitido para o mundo inteiro.

Lutar contra a guerra “interna” e externa é o programa político de Michael Moore. E Tiros em Columbine bem que serve a este objetivo. Aliás, ele é claramente assumido. Seu diretor, Moore, disse sem tergiversações, serem seus filmes militantes mesmo. Diretor provocativo que deu ao gênero documentário uma dimensão extraordinária na terra de Hollywood, Moore pretende se colocar frontalmente contra a mentalidade belicista dominante na sociedade americana, assim como também, contra os ideais da direita, no país em que o individualismo consumista prima sobre todos os outros, como os valores humanistas de solidariedade, por exemplo. Se no capitalismo tudo se perde em mercadoria, nos EUA, tudo vira avidez por dólares. Foram eles que, se não inventaram, difundiram para o mundo inteiro a idéia de que time is money. Em Tiros em Columbine o diretor Moore pretende simplesmente denunciar a obsessão por ganhar dinheiro com a venda de armas – e, portanto, com a morte de seres humanos, e a relação que existe entre a produção permanente do medo e a necessidade de autoproteção através das armas. Os Estados Unidos são o país que possui o maior número de armas de fogo por habitante no mundo todo! Lá também, qualquer um que queira poderá comprar uma arma num supermercado, assim como suas munições. E país e filhos, desde bem cedo, aprendem não somente a praticar tiro-ao-alvo, mas também a caçar. Para provar a facilidade com a qual se consegue uma arma nos EUA, Moore, que de diretor se transforma também em ator - mas também num verdadeiro repórter, mostra ele mesmo, que ao abrir uma conta bancária se pode obter como brinde uma arma, que foi, no seu caso real no filme, um fuzil de caça.

Com Tiros em Colombine em cima daquilo que muitos jornalistas noticiaram como algo mais ou menos corriqueiro - e que acontece quase todos os anos em vários estados norte-americanos, Moore constrói um grande libelo humanista. A tragédia, entretanto, ocorreu na Escola Columbine, em Littleton, no Estado do Colorado, em 1999. Dois alunos atiraram em 12 colegas e um Professor, matando-os e ferindo muitos outros colegas. Estavam munidos de bombas e rifles semi-automáticos e pareciam (porque vemos tudo diretamente no filme) munidos também de uma aura: não estavam perturbados. Pareciam cumprir fria e conscientemente uma tarefa de saneamento. De posse dos filmes dos circuitos de segurança internos da Escola, dos diálogos entre professores e policiais e de entrevistas com alguns dos sobreviventes daquele trágico dia, Moore parte para procurar uma resposta que não poderá ser através da boca dos executores da engrenagem mortífera, vez que eles se suicidaram. Tão logo pôde, estabelece uma relação de necessidade entre a violência primária desses jovens e aquela do próprio Estado. Um dia antes do massacre, a fábrica de mísseis (a maior do país) que fica ao lado da Escola, bateu todos recordes anteriores, vez que então, teve o maior número de seus produtos destrutivos atirados em Kosovo. Os Estados Unidos são assim. Seus soldados são assim. Despejam bombas sobre a população afegã ou a de Bagdá ouvido peça de rock e mascando chicletes. Que diferença têm dos nazistas que testaram seus engenhos mortíferos em Guernica!

Charlton Heston, Presidente da NRA (algo como Associação Nacional de Rifles) aparece várias vezes fazendo discursos e campanha contra a proibição do uso de armas, tendo inclusive Moore ido à sua casa para entrevistá-lo. E este faz isto com muita habilidade desmoralizando o velho canastrão racista e de extrema direita que diz em alto e bom som que “é um direito dos americanos armarem-se para defender os valores que herdaram dos pioneiros brancos que criaram a grandeza da América”.  São 11 mil mortes anuais por armas de fogo nos Estados Unidos. A maioria das vítimas é de negras e negros pobres. Mas ao lado, no Canadá, o índice de mortes por armas de fogo é baixíssimo. Moore vai ao Canadá e através de entrevistas a personagens de diversos setores sociais chega à conclusão que a explicação só pode estar na mentalidade.

Os analistas diversos comentem equívocos às vezes, mas nem sempre se tratam apenas de equívocos. A população americana é, em termos proporcionais, ao mesmo tempo, a mais desinformada e a mais manipulada, das sociedades industrialmente avançadas, em total contradição com o elevado grau de desenvolvimento tecnológico e científico alcançado pelo país. Em Tiros em Colombine Michael Moore procura despertar o povo americano para algo que se encontra inevitavelmente cada vez mais no centro da propulsão do capitalismo mundial: a indústria de armamentos. É verdade que Moore não vai até as últimas conseqüências na sua explicação-demonstração. Para isto ele teria de ser capaz de mostrar de que modo a indústria de armamentos está ancorada na estrutura mesma do capitalismo contemporâneo. Mas o ponto de partida de seu filme não é menos significativo quando retrata com documentos imagéticos diversos uma espécie de patologia que vem se desenvolvendo em centros urbanos diversos e que envolve, não apenas pessoas jovens e desempregadas, mas homens e mulheres de idades, raças e classes sociais distintas. Atirar em crianças e adolescentes nas escolas e colégios dos Estados Unidos virou uma espécie de síndrome. Mas a questão inicial é simplesmente a seguinte: por quê?

As respostas são múltiplas e na verdade cada ato individual é a síntese de múltiplos fatores histórico-sociais e psicológicos. Alguns atiradores se suicidam após a sessão de crimes em série. Matam crianças e jovens. Muitas vezes são eles mesmos jovens. Jovens sem futuro ou com um futuro traçado pelas guerras a vir. Educados em escolas, mas também pelos video-games de guerras. Mas matar crianças e jovens é matar a esperança da vida, é matar a mais longa vida que se pode esperar! Curiosamente, como mostra o filme, os responsabilizados não são os produtores de armas ou o Estado ou os governantes. No filme a mídia comum associa aos crimes em série, tantos personagens como um cantor de uma banda de rock chamado Marilyn Manson. Este é entrevistado por Moore e diz que parece ser mais fácil acreditar que ele seja capaz de produzir mortes em série do que o Presidente Bush, quando ele tem muito menos poder que o Presidente.

O povo estadunidense é assim, estupidificado, inclusive pela mídia que não se constrange em fazer programas denominados show-reality, de reportages em direct, a exemplo também dos programas do tipo Big Brother que os canais de televisão brasileiros adoram importar. O apelo ao sensacionalismo é a tônica desses tipos de programas que parecem entreter facilmente – e muito mais que informar, deforma ao se apropriar do tempo socialmente desnecessário à produção de mercadorias reais, do tempo do lazer. Produzem homens vazios de crítica e de ideais, homens-mercadorias tão descartáveis como as latas dos enlatados. Eles são, ao mesmo tempo, a expressão de um mundo onde o capital fictício (os títulos de valores negociados nas bolsas) dominam a produção real de mercadorias. Num mundo em que a relação entre forma e conteúdo se acha invertida, a verdade termina sendo apenas um momento do que é falso! O desfile das imagens e sons massificantes na época de sua reprodutibilidade técnica (rádio, fotografia, cinema, vídeo, CD-ROM, a mídia etc.) produz uma verdadeira autonomização da representação imaginária que, dotada de potências extraordinárias transforma o homem-objeto-mercadoria em fantasma do mundo material, do mundo do não-vivo, servindo-o, ao invés de ser por ele servido! É possível dizer que, desse modo, não é de estranhar que o número de patologias psicossomáticas tenha aumentado, tanto quanto os números daqueles que as sofrem.  A sociedade estadunidense é aquela dos obesos e ao mesmo tempo, aquela do serial killer, de Mac Donald e de Coca Cola, produtos de baixa qualidade e enlatados. Assim, o “americano” ele mesmo virou um enlatado! Numa sociedade onde o valor de uso das coisas está submetido a seu valor de troca, como a força de trabalho é capaz de trocar seu uso por cada vez menos valor (veja-se o exemplo da terceirização), o homem em geral vale cada vez menos e a vida quase nada ou nada!

É verdade que esses fenômenos não são exclusivos à sociedade norte-americana. A perda do interesse pela vida é um traço marcante de nossa época. Ela, na verdade, produz um verdadeiro anti-valor, a saber: o desejo de morte. Freud [1] chamou a isto de pulsão de morte, mas acreditou, ele, que a referida pulsão constituía algo endógeno, essencial à natureza humana. E assim, induzia ele na crença da existência de uma natureza humana supra-histórica, como o fez muitas religiões e como repete hoje o senso comum. Tal qual Bush – e muitos hoje, ele também acreditava que uma sociedade pacífica é um sonho utópico. Mas o historiador e o cientista social não podem se contentar com tais afirmações. Estes deveriam partir da idéia que a essência do humano tem uma historicidade, assim como a própria violência e as guerras. É preciso admitir o dinamismo psicológico do homem, observando sempre suas condicionantes histórico-sociais. Deste modo, não é possível aceitar uma idéia muito comum que reproduz e reforça as ideologias dominantes especialmente aquela da época da decadência do capitalismo: o homem sempre foi violento, portanto as guerras sempre existiram e sempre existirão!

A última fase do capitalismo que a humanidade experimenta se caracteriza por uma gigantesca acumulação de miséria e capital fictício. Tratam-se das conseqüências de pelo menos cinco séculos de exploração em larga escala do trabalho social pelo capital privado [2] . O fetichismo da mercadoria penetrou todos os poros da “humanidade” através do processo da planetarização do capital [3] . Como a reprodução ampliada do capital se faz reduzindo o círculo dos seus proprietários privados é “natural” que antigos capitalistas se tenham tornado integrantes das chamadas “classes médias” e antigos pertencentes destas se tenham tornado integrantes dos seus estratos mais baixos. Uma das características dessa etapa do capitalismo atual é a redução dos contingentes do trabalho diretamente produtivo, muito embora os setores de serviços tenham crescido quantitativamente [4] . Esta “sociedade” é assim um verdadeiro paradoxo anti-social. A maioria da população do planeta experimenta crescentemente um processo de barbárie imposto pela mundialização do capital [5] que produz uma massa de excluídos que ultrapassa em larga medida o conceito de exército industrial de reserva [6] estabelecido por Marx no século XIX e as necessidades da produção social diretamente produtiva.

São homens descartáveis que, infelizmente para o capital, não podem ser apagados das estatísticas. O vazio existencial que tais relações sociais produzem é imenso e quando o homem não consegue sublimar criativamente o seu vazio existencial tende a buscar na violência contra o outro uma escapatória que só faz aprofundar o fosso que o separa da vida. O homem do capitalismo se acha assim diante de um paradoxo constitutivo de sua essência evolutiva: uma riqueza sem precedentes é produzida socialmente em meio a uma crescente miséria social e espiritual. Não seria exagero, desse modo, denominar o período atual como subsumido pela “sociedade da miséria”. Não seria exagero afirmar que essa miséria é, sobretudo, espiritual. E assim, o número de habitantes do planeta se agiganta. Desse modo, somente métodos extensivos e gigantescos, empregados em circunstâncias históricas expecíficas podem reduzir o impacto da pressão sócio-econômica-política dos excluídos da economia capitalista: as grandes guerras mundiais do século XX com os seus 150 milhões de mortos e mutilados cumpriram assim, um papel saneador dotando à violência do capital de uma dimensão sem precedentes na história.

Dois marcos contemporâneos têm sido considerados como indicativos de um processo de aceleração da história: a queda do Muro de Berlim e o ataque às Torres Gêmeas nos EUA. Muito se tem dito também sobre a natureza curta do século XX [7] ou sobre o que ficou conhecido como o Fim da História [8] , graças à contribuição do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Francis Fukuyama [9] . Ao contrário destas posições, nós partimos da hipótese que o século XX começou antes de findar o século XIX e ainda não acabou. Ele começou com a verdadeiramente Primeira Guerra Mundial (a Guerra franco-prussiana)1870/71, não somente pelo número de nacionalidades envolvidas, como também pela sua própria natureza (o espaço vital para o capital alemão). Mas os problemas da sobrevivência capitalista não acabaram com o século passado. As questões do imperialismo, do capital financeiro especulativo, só fizeram se aprofundar e os EUA são a expressão nítida desse fenômeno.  

Bush e os Estados Unidos nos mostraram o quanto os sistemas políticos são perversos e como as mudanças na vida social, cultural e econômica se processam aceleradamente na direção que a vida não necessita. Moore nos mostrou o quanto a democracia americana é uma abstração diante da truculência invencível da indústria de armamentos. As bombas, como os canhões não querem os museus e o capitalismo americano, para sobreviver, necessita a injeção de 500 bilhões anuais na indústria de armamentos.  Sozinho, esse orçamento é o equivalente ao orçamento militar das dez maiores potencias mundiais depois dos Estados Unidos.  E desse modo, dinheiro público financia a indústria privada para matar e destruir o público.  A indústria de armamentos é a única com essas características: o estado assegura seu mercado comprando antecipadamente seus produtos e investindo também antecipadamente na sua produção. É isto que há mais de uma século tem sido um dos fatores fundamentais explicativos da “longevidade” capitalista. O capitalismo precisa de guerras. Os capitalistas têm nelas os seus respiradouros.

Após o desmoronamento, em 1991, da União Soviética, única concorrente importante da superioridade militar norte-americana durante os quarenta anos de “guerra fria” que seguiram à Segunda Guerra Mundial, idealistas poderiam acreditar que as despesas militares mundiais iam diminuir e que a corrida armamentista terminara. Doce ilusão utópica que não compreende que a economia mundial está num beco sem saída. O desenvolvimento das forças industriais e produtivas são bloqueadas pelas relações de produção capitalistas. Somente setores específicos e por razões específicas conseguem crescer e valorizar os capitais investidos, como o capital financeiro, a indústria de armamentos, a química e a petroquímica, a informática, o tráfico de drogas e o de armas. 40% do aparelho de estado norte-americano se acham comprometidos nesses dois últimos. A tendência inexorável para o aumento das despesas militares norte-americanas é assim compreensível e incontornável. Depreende-se, portanto, dessas tendências uma grande pretensão em defesa de um aumento ainda maior do orçamento militar, para evitar uma degradação relativa da potência militar norte-americana.

A justificativa para esta escalada viria a ser fornecida pelos “atentados” de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington. Bush anunciava em seu Discurso sobre o estado da União, pronunciado diante do Congresso dos Estados Unidos em 29 de janeiro de 2002, que a guerra estava apenas começando. Após ter evocado a hipótese de intervenções militares em diversos países suspeitos de abrigarem organizações terroristas e de ter instalado tropas no Iêmen e nas Filipinas, apontava explicitamente o Irã, o Iraque e a Coréia do Norte, acusando-os de trabalhar na produção “de armas de destruição em massa”. Eles todos se tornarampaíses pertencentes ao “eixo do mal” e alvos de uma possível intervenção militar dos Estados Unidos.

Hoje, a perversão desse processo é de tal monta que a massa de trabalhadores e excluídos vivem ainda uma submissão suplementar à alienação da produção da riqueza material da sociedade: a subsunção às imagens-sons-representações massivas do capital fictício enfim, à ideologia das classes dominantes. O capital faz os homens à sua imagem e às suas necessidades que são de fato pseudonecessidades, como diria Guy Bebord [10] . As conseqüências desse fenômeno podem se achar na origem real e explicativa de muitos dos fenômenos de patologias do mundo moderno, para além das causas imediatas da história individual genética e social de cada ser humano. A síndrome do serial killer tem aí o substrato geral de sua explicação. Não é, portanto, de se estranhar que a depressão se tenha transformado, por excelência, na forma de manisfestação da dor psíquica da fase atual da sociedade capitalista globalizada. E quanto mais o homem-social se assujeita, tanto mais ele contempla este mundo de inversões e perversões; quanto mais aceita a pseudoverdade das imagens e representações dominantes, menos conseguem compreender a própria existência e as suas profundas e reais necessidades.  Deserotizado vive uma vida cada vez mais desprovida de substância e excitação natural e que progressivamente passa a ser habitada pelo tédio, pela melancolia e pelo desespero diante de si mesmo. Ao princípio de realidade alienado substitui um princípio de prazer alienado. Para esse vazio a excitação que produz a violência é de um apelo viciante.

Vive-se assim, no capitalismo neoliberal uma contradição entre a base nacional dos Estados e um sistema econômico mundializado. As multinacionais são de uma só vez, a expressão do engendramento internacionalizante das forças produtivas e da concentração/centralização de suas acumulações. São ainda a expressão da concorrência exacerbada inerente às suas existências. No plano superestrutural, todas as instituições e valores também se expressam nessa crise permanente e totalizante. A família, a justiça, a educação, a saúde, enquanto expressas nos valores e nas instituições que lhes suportam, dão mostras, como vemos de forma ímpar nas representações cinematográficas, do quão combalidas se encontram. Assim, se a humanidade conseguir sobreviver a um holocausto termonuclear ou a mais que visível destruição progressiva do meio ambiente, poderá durar muito? Um século? Parece cada vez mais difícil!

Assim, a leitura que extraímos de uma gama considerável de filmes produzidos pela indústria cinematográfica americana, por exemplo, parece corroborar a idéia de que aquilo que se denomina de “civilização ocidental” está em plena decadência. A ilusão do progresso esconde a miséria em muitos campos. Não é possível deixar de discutir a noção de "civilização". Talvez, não seja por acaso que uma muito boa safra de filmes tenha sido produzida nos últimos anos. Mais ou  menos conscientemente busca dar conta desse processo no qual a humanidade inteira parece não conseguir lutar contra a economia-política da pulsão de morte. Tiros em Columbine e Fahrenheit 11/9 banham-se no mesmo caldo, como um outro filme crítico, Dogville. Os EUA aparecem nele como uma aldeia aparentemente bondosa esperando apenas a renovação dos dias. Mas ela esconde o quanto vive sob uma engrenagem perversa. São puritanos e vivem sob um ritual imutável. Existe um cultivo do medo permanente de infringir a lei. Mudar esse ritual é crime. O estupro da forasteira é legítimo. Eles precisam da estrangeira depois de havê-la enxotado, como a um bode expiatório. Mais que pessimista, porque sem saída, a forasteira - que fugiu da “civilização” para não cometer muitos crimes, termina chegando à conclusão de que não existe saída. Pede socorro ao seu pai que a havia avisado e faz explodir a aldeia, matando inclusive as suas crianças já perversas. É uma metáfora da história real!

Dogville não é um filme americano. Porém, é verdade que filmes interessantes brotam também de Hollywood. A BELEZA AMERICANA é um exemplo. E como em Dogville, a metáfora da grande pátria mãe é incontornável. Diz coisas que o americano médio seguramente não gosta de ouvir sobre a sua sociedade livre e democrática que não funciona, mas que domina e mata. Em América Beauty o diretor Sam Mendes não é menos cáustico. A filha odeia o pai e quer assassiná-lo, comungando com sua mãe o mesmo desejo secreto. O marido é fracassado, incompetente, desocupado e perverso aos olhos dos seus, dos vizinhos, do ex-patrão e de todos. Contudo, é o mais saudável de todos. Não se adapta a uma sociedade inadaptável à sua humanidade. Ele será morto. Teria outra saída? De antecipar e matar. Mas esta seria uma pseudo-saída. Seu vizinho recém chegado, militar de alta patente reformado, será seu executor. O militar que esconde sua admiração ao nazismo, não admite ao mesmo tempo seu próprio homossexualismo, nem ser “rejeitado” pelo vizinho “sadio”. Ele prefere assassinar que ser reconhecido como homossexual!  Mas quem de fato apertou o gatilho do 38 ? O militar tem seguramente a sua dose de responsabilidade, e ela é grande. Mas aí - ficção que imita a realidade, como na vida real de Columbine, a fome juntou-se à vontade de comer!

Moore repetirá sua motivação em outros filmes e especialmente em Fahrenheit 11/9. Ele parece se ultrapassar nele. Mas uma limitação de sua abordagem permanece visível: ele não consegue ir fundo na crítica às bases da sociedade capitalista. Em Fahrenheit 11/9 ele parece aceitar a versão oficial cada vez mais contestada sobre os atentados de 11 de setembro de 2001[11] . Este acontecimento está se caracterizando como a maior manipulação da história com o objetivo de justificar a idéia de que o inimigo exterior já se encontra no interior do país.

O inferno - em Columbine, em Bagdá, em Berlim, em Moscou e no mundo, são os outros, como diria Jean-Paul Sartre. Que tipo de vida, de tratamento, de concorrência (dentro e fora da escola) foram submetidos os jovens atiradores de Columbine? Seja como for, são filhos do seu tempo com o qual se parecem mais que com os próprios pais. Seus sintomas - como os de tantos outros jovens, foram de destruição e de autodestruição. São doenças individuais e sociais em curso. Patologias como as de filhos que assassinam os pais para ficarem com as aposentadorias se banham nesse ambiente histórico-social. Por que não as dos jovens de Columbine!

NOTAS
1- FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Os Pensadores.São Paulo, Abril Cultural, 1978.

2- NÓVOA, Jorge. O Canto do Cisne. In: A História à deriva: um balanço de fim de século. Salvador, EDUFBA, 1993.

3- NÓVOA, Jorge. A orfandade dos trabalhadores. In: O Olho da História. , v.1, n.4, - (1997) – Salvador-Ba: jul, 97. pp 45 a 57

4- CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.

5- MARX, K. Le Capital. Paris, Ed. Sociales, 19

6- HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

7- Ler entrevista de Francis Fukuyama nas páginas amarelas da revista Veja de 17 de novembro de 2004.

8- FUKUYAMA, Francis. O FIM DA HISTÓRIA E O ÚLTIMO HOMEM. Rio de Janeiro, Rocco, 1992.

9- DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo.Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

10- MEYSSAN, Thierry. 11 de setembro de 2001: uma terrível farsa. São Paulo, Usina do Livro, 2003. CHOMSKY, Noam. 11 de setembro. Rio de Janeiro, Bertrand, 2002.

FICHA TÉCNICA
Título: Tiros em Columbine. (Bowling for ColumbineEUA. 2002) GêneroDocumentário. Tempo de Duração: 120 minutos  Direção: Michael Moore Roteiro: Michael Moore. Produção: Charles Bishop, Jim Czarnecki, Michael Donovan, Kathleen Glynn e Michael Moore. Música: Jeff Gibbs. Fotografia: Brian Danitz e Michael McDonough. Edição: Kurt Engfehr. Elenco Michael Moore (Michael Moore) Denise Ames (Garota sexy com arma), Charlton Heston (Charlton Heston), Marilyn Manson (Marilyn Manson), Matt Stone (Matt Stone), Barry Galsser (Barry Galsser), John Nichols (John Nichols).

SUGESTÕES DE LEITURA
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo.Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Os Pensadores.São Paulo, Abril Cultural, 1978.
FUKUYAMA, Francis. O FIM DA HISTÓRIA E O ÚLTIMO HOMEM. Rio de Janeiro, Rocco, 1992.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
MARX, K. Le Capital. Paris, Ed. Sociales, 1995.
MARX, K. Le Capital. Paris, Ed. Sociales, 1995.
NÓVOA, Jorge NÓVOA, Jorge “A orfandade dos trabalhadores”. In: O Olho da História. v.1, n.4, - (1997) – Salvador-Ba: jul, 97. pp 45 a 57
NÓVOA, Jorge. “O Canto do Cisne”. In: A História à deriva: um balanço de fim de século. Salvador, EDUFBA, 1993.