Sobre o filme Memórias Póstumas de Brás Cubas (versão em pdf)
Antônio da Silva Câmara
Sociólogo. Doutor pela Universite de Paris VII – 1994. Professor do Departamento de Sociologia e da Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS)/ UFBA.

SINOPSE
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”

Após sua morte, no ano de 1869, Brás Cubas, disposto a se distrair um pouco na eternidade, decide narrar suas memórias e revisitar os fatos mais marcantes de sua vida. Relembra sua infância, juventude e personagens marcantes, como o amigo Quincas Borba, que passa de mendigo a milionário. Discorre ainda sobre sua formação acadêmica em Portugal e o discutível privilégio de nunca ter precisado trabalhar. Baseado no romance de Machado de Assis – um dos mais importantes da literatura brasileira – o filme mantém as características que marcam o personagem machadiano e alterna ironia e amargura, melancolia e bom-humor sem perder a leveza. Em qualquer estado de espírito, ele nos surpreende pela irreverência e devastadora lucidez.

COMENTÁRIO CRÍTICO
O diretor do filme Memórias Póstumas de Brás Cubas conseguiu com sucesso adaptar o romance homônimo para o cinema, normalmente este tipo de conversão da literatura para o filme é uma tarefa de difícil consecução por tratar-se de duas linguagens distintas. O literato ao construir sua obra utiliza-se do seu talento para criar situações onde a subjetividade e a objetividade apareçam entrelaçadas, tanto na descrição das características específicas dos personagens quanto das condições sociais nas quais eles estão imersos. O pensador marxista George Lukács ao analisar a literatura realista verificou que a mesma era capaz de aliar de modo exemplar a densidade psicológica dos personagens com vigorosa descrição da realidade social de sua época. Retornando à passagem da literatura para o filme, observa-se que a tarefa imposta ao romancista é a de criar um mundo na sua integralidade e, ao mesmo tempo, permitir que o leitor possa apossar-se dele a partir de referências subjetivas e objetivas que constam na sua obra. Isso empresta ao romance um grau de complexidade elevado.

Já o cinema dispõe de meios imagéticos que permite ao criador da obra de arte representar de modo mais imediato a sua imaginação. Ele não precisa de longas descrições da realidade objetiva, pois tem meios para mostrá-la e mesmo as características psicológicas dos sujeitos envolvidos na trama não precisam ser contadas e sim demonstradas. Por isso o cinema dispensa os longos discursos, mas é obrigado a esmerar-se na arte do ator para transmitir as emoções que caracterizam um personagem; dispensa longas descrições, mas precisa ser capaz de recriar situações a partir da imagem que dialoguem diretamente com o espectador; além disso, o som completa contribui para a construção da situação. São estes os motivos que levam os cineastas a trabalharem com roteiros e não com longos textos. A adaptação de uma obra romanesca deve necessariamente ser transformada em um roteiro simples com indicação de texto e das ações que devem ocorrer ao longo da filmagem. No caso do livro de Machado de Assis, em se tratando do escritor brasileiro mais estudado pelos literatos, a possibilidade de adaptação de suas obras apresenta-se como uma temeridade, pois haverá sempre algum especialista que analisará as omissões que a obra cinematográfica guarda em relação à obra romanesca.

Para discutir-se esse filme, logo, mesmo tendo em mente a obra original devemos afastar-nos da tentação, sempre presente, de procurar sua veracidade em relação ao Brás Cubas original e investir, com mais ambição, na possibilidade de descortinar a contribuição do filme para a visualização da sociedade brasileira e de alguns de seus personagens em um período histórico já passado. Neste sentido, se algum reparo faço ao cineasta é o de prender-se em excesso ao texto original, não exercendo até o fim o direito do artista em recriar uma obra original.

Mas deixando de lado essa timidez do cineasta, quero analisar os aspectos narrativos e imagéticos que dão força ao filme situando-nos em determinado momento da história brasileira. Em síntese, a história narrada por próprio Brás Cubas, nos dá conta de sua  própria vida burguesa. O filme começa com o enterro de Brás Cubas, acompanhado por uns poucos amigos, com a sua própria narração do fim da sua existência. Mas poderíamos dizer que o verdadeiro início do filme ocorre com este no leito de morte e a austera presença de Vigília, sua ex-amante: “Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, a ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava comigo”.

Desde o início o filme guarda o ar burlesco do personagem com a existência humana. Uma história é contada de forma retrospectiva, com um morto-autor relatando sua existência. Não se trata, portanto de um autor que após a morte pode ser consagrado, mas apenas de um morto relembrando sua passagem na vida, sendo cobrado em seus delírios pela própria natureza que o faz viajar no tempo e ver os horrores da vida humana ( nesta cena o diretor do filme moderniza o filme incluindo horrores do século XX). Esse procedimento terá seqüência com Brás lembrando o seu nascimento, as incontáveis frivolidades da família burguesa na sua época de infância; a ausência de referências fortes nos seus genitores; a vida de prazeres inúteis na sua juventude, quebrada unicamente pela presença abrasante de sua primeira amante, Marcela:
Sim, eu era um garção bonito, airosos; abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas, porém a que me cativou logo foi uma ... uma... não sei se digo. (....) A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a “linda Marcela”, como lhe chamavam os rapazes do tempo .

A amante caprichosa e vaidosa ocupará o jovem durante mais de um ano, renovando as promessas de amor em troca de jóias, sedas e presentes caros. O segundo momento importante do filme é viagem para a Europa providenciada pelo pai como forma de impedir que o filho destruísse toda a herança da família com presentes para Marcela. O estudo de Direito em Coimbra, como ocorria com os rebentos das famílias ricas no Brasil não tem o propósito efetivo de formar um jurista qualificado, mas sim o de providenciar um diploma para o personagem transitar na Corte. O diretor consegue através de imagens de Coimbra e da sua conceituada Faculdade de Direito unir o relato à imagem representando a inutilidade do curso de direito para os rebentos das classes dominantes brasileiras. Com menos ímpeto, descreve o turismo de Cubas pela Europa e seus amores em vão, tomados como passa tempo para evitar o retorno imediato ao Brasil após o fim do curso de Direito. Apenas o aviso de que a sua mãe encontra-se no leito de morte demoverá Cubas da sua vida amena na Europa. O retorno, em tempo de acompanhar a agonia e morte da mãe, trará um novo momento, o de inflexão do personagem que se distanciará da vida urbana, abrigando-se na floresta da Tijuca. As imagens aqui são reveladoras da canalhice de Cubas que se aproxima de Eugênia, inicialmente sente-se atraído pela jovem bela, afastada do mundo mundano da corte, mais recua de suas intenções e retorna apressado para a vida social após perceber que a moça era coxa:
Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mã calou-se; a filha respondeu sem titubear:
- Não, senhor, sou coxa de nascença.
(...)
Porque bonita, se coxa, porque coxa, se bonita?

O romancista já descreveu com maestria este momento, mas agora o filme mostra-nos uma moça bonita e coxa, a descoberta de Brás Cubas desse defeito físico, a sua rejeição. Creio que esta estadia na Tijuca e a perfeita representação  desta oportunidade perdida do personagem seja um dos momentos mais bem sucedidos do filme.

O retorno à corte, abre um novo momento com o encontro com Virgilia, a tentativa do pai de torná-lo um deputado, o reencontro com Marcela mais velha e empobrecida, os próximos passos de uma vida inútil são perseguidos pelo filme. A perda do cargo de deputado para Lobo Neves, e, consequentemente de Marcela que cede ao encanto do poder. O cineasta constrói a cena que marca o fim das esperanças  de Brás: ele e seu pai dirigem-se à casa de Marcela para pedir sua mão e descobrem que Lobo Neves já é o escolhido. O pai de Cubas morre, segundo ele dessa afronte, repetindo: “Um Cubas”, “Um Cubas”. O casamento de Virgília e a sua mudança com o marido para São Paulo, levam Brás Cubas a levar uma vida retirada. Tal situação será alterada com o retorno do casal. A partir daí, (suprimindo o personagem do primo de Virgília que no romance de Machado faz a sua reaproximação de Brás) Cubas reencontra-se com Virgília, torna-se amigo do marido e da mulher, e inicia um caso com esta. Os míseros detalhes da sórdida relação desfilam em diversas cenas: traição, amizade, aproximação, frustração com a possibilidade de o deputado mudar-se do Rio de Janeiro, o alívio causado pelo fato deste não ter se mudado; a descoberta velada do caso de amor pelo deputado; a viagem para uma província do norte.

Uma nova seqüência compreendendo a transição etária do personagem principal aprofunda a sua vida vazia e mesquinha: A amizade com Quincas Borba, ex-colega de Brás Cubas, que reaparece como pobre, mendigo e se impõe nessa sua nova existência, persongem símbolo de Machado  que ridiculariza a sociedade com seu esoterismo (ideologia do humanitismo); o retorno de Marcela da província do norte sem que o caso de amor seja retomado; a ridícula experiência parlamentar; a passagem dos anos e as novas possibilidades de realização de um casamento, frustrado pela morte da noiva; a companhia de Quincas Borba, transmutado, rico com herança recebida da família. Por fim a vontade de Brás de imortalizar-se, criando um emplasto (Emplasto Brás Cubas) que resolveria os males da humanidade. O golpe de vento, a pneumonia, a morte... E como ele próprio diz: o que de melhor ele fez foi não deixar herdeiros no mundo. O diretor do filme põe o leito de morte e o espectro  de Brás Cubas nos acompanhando em todos os momentos do filme e, de fato, nos dá  a dimensão do ceticismo machadiano com a vida burguesa na sua época.

Um filme pode ser analisado para além da sua própria representação, na medida em que nos permita mergulhar na condição humana. Creio que a obra original de Machado de Assis e sua representação fílmica têm esta qualidade,  a partir delas é possível refletir-se sobre o vazio da vida das classes ociosas  no Brasil do fim do império. A relação superficial e cosmopolita desta classe com o mundo europeu onde buscava a ilustração encontra-se em narrativas da história do Brasil que, até bem pouco tempo atrás, via nos poetas românticos que retornavam da Europa a chama das lutas pela independência, contra a escravidão, etc. Ou que aureolava os poetas jovens que morreram após retornar da inútil vida na Europa. O cosmopolitismo destes nossos bacharéis românticos, ao menos trazia consigo os ideais iluministas, que não mudando o mundo foram úteis para moldar a nova ideologia burguesa no país. Brás Cubas mostra o reverso destes poetas acolhidos como nossos quase heróis do passado: o aprendizado da cultura cosmopolita enquanto um amontoado de informações inúteis; as experiências do filho da classe dominante não ultrapassando o nível sensorial. Se alguma absorção cultural seria possível esta seria a do cinismo e a do ceticismo.

Pode-se alegar que as principais obras de Machado de Assis trazem este traço de ceticismo, e até mesmo que o seu universo literário manteve-se restrito às experiências das famílias ricas do Rio de Janeiro, mas a sua contribuição, respaldada pelo filme,  está em nos fornecer um panorama de mesquinhez, egoísmo e ausência de visão de futuro  da classe dominante brasileira, traços estes que ainda caracterizam-na nos dias atuais.    

FICHA TÉCNICA
Título: Memórias Póstumas; Ano de Produção 2001, Brasil, Cor, 101 minutos; Direção: André Klotzel; Roteiro: André Klotzel adaptação do romance Mémorias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis; Produção: André Klotzel; Música: Mário Manga Fotografia: Pedro Farkas; Desenho de Produção: Marjorie Gueller Direção de Arte: Adrian Cooper Edição: André Klotzel. Elenco: Reginaldo Faria (Brás Cubas e seu fantasma) Petrônio Gontijo (Brás Cubas, jovem) Marcos Caruso (Quincas Borba) Stepan Nercessian (Bento Cubas) Viétia Rocha (Virgília) Débora Duboc (Dona Eusébia) Otávio Muller (Lôbo Neves) Walmor Chagas (Dr. Vilaça) Sônia Braga (Marcela) Nilda Spencer (Dona Plácida) Joana Schnitman (Mãe de Brás Cubas)

SUGESTÕES DE LEITURA
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Editora Globo. São Paulo. 1997.
LUKÁCS, George. Estética 1. Grijalbo. Barcelona. 1982.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1970.
SCHWARZ, Roberto. "Complexo, Moderno, Nacional e Negativo". Novos Estudos. São Paulo, Duas Cidades, 1, dez., 1981.

SITES
Araújo,Ruy Magalhães de. Machado de Assis: dimensão diacrônica de alguns aspectos do pessimismo.  http://www.filologia.org.br/soletras/3/05.htm,  acessado em 31/10/2006.
Cunha, Manoel dos Santos. Avant-garde, Literatura e cinema. In www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/avantgarde.pdf. , acessado em 20/10/2005.
NOTAS DA PRODUÇÃO do filme Memórias Póstumas de André Klotzel. http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/arq41.htm.