Liam (versão em pdf)
André França
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da UFBA. Professor do curso de Cinema e Vídeo da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC).


SINOPSE
Em Liam, o diretor Stephen Frears realiza um belo retrato da sociedade inglesa da década de 1930, período em que a Grande Depressão do entreguerras disseminava os flagelos do desemprego e da privação por muitos países. Muitos fatores costumam ser relacionados como constituintes do cenário que culminou com a Grande Depressão: a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, a recessão da economia industrial dos Estados Unidos, a queda das exportações para este país, a assimetria entre a dimensão da economia norte-americana e de outros países, os movimentos de expansão e retração do “ciclo do comércio”, a queda nos movimentos de migração, a queda no fluxo de capital (na forma dos empréstimos internacionais), uma certa auto-suficiência alcançada pela economia dos Estados Unidos, o protecionismo aplicado às economias nacionais em tempos de guerra, o colapso monetário da Alemanha após a 1ª Grande Guerra, o desaparecimento das poupanças privadas, o surgimento do fascismo.

Na Inglaterra, em 1932, o número de desempregados chegou a aproximadamente três milhões de pessoas. Ambientado em Liverpool, o filme toma uma família católica, os Sullivans, como centro e ponto de partida para este painel de conflitos religiosos, morais, políticos e econômicos naquela sociedade.

Família pobre (mas não miserável), os Sullivans são formados pelo pai, a mãe e três filhos: Con (17 anos), Teresa (13) e Liam (8; idades aproximadas). O pai trabalha num estaleiro e Teresa na casa de uma rica família judia, realizando trabalhos domésticos. O pouco dinheiro que ganham mal dá para pagar o aluguel, comprar comida e carvão para manter a casa aquecida. Apesar da vida apertada economicamente, a família vive em harmonia, como mostram as primeiras cenas do filme, quando comemoram a chegada de um novo ano. A situação, no entanto, se agrava quando o estaleiro é fechado e o padre da comunidade aconselha Teresa, durante uma confissão, a deixar a casa onde trabalha.

COMENTÁRIO CRÍTICO
A narrativa apresenta uma sociedade mergulhada em vários conflitos, constituída de classes que se atritam. Primeiro, temos a animosidade entre ingleses e irlandeses. A Inglaterra apresenta-se na época repleta de imigrantes irlandeses em busca de oportunidades de trabalho. Como estes aceitavam trabalhar por salários menores que aqueles pagos aos ingleses, são vistos como “ladrões de emprego” e traidores do movimento trabalhista que procura se articular na working class. No bairro onde mora a família de Liam, mesmo entre amigos, esta animosidade se apresenta: quando comemoram o ano-novo em casa, à noite, uma mulher canta uma música que fala dos encantos da Irlanda, quando um homem então fala mais alto: “Se lá é tão bom, por que não volta pra lá?”. Quando o estaleiro fecha e o pai de Liam vai procurar trabalho nas docas, ele vocifera contra os irlandeses que lá estão aceitando trabalhar por menos.

Há também as divergências religiosas, que moldam e trazem tensões às relações entre católicos, protestantes e judeus. Em diversas cenas encontramos representações destes conflitos. Quando Teresa comparece à entrevista de emprego na casa da rica família judia, mente, apressando-se em dizer que não é católica (pois os imagina protestantes). E, próximo ao final do filme, quando informa à família que não trabalhará mais na casa, ela mente de novo, dizendo à filha da dona da casa que o motivo é o fato de eles serem judeus. O pai de Liam certa vez manda-o parar de cantar uma música, dizendo-lhe que ela é “coisa de protestantes”. Con briga com seu pai, porque não gosta que ele fale mal dos judeus. No filme, os judeus são retratados como os odiados credores (e cobradores) do aluguel da casa da família Sullivan e também os donos das lojas de penhores, às quais a mãe de Liam recorre, vendendo roupas da família quando precisam de dinheiro para comprar comida. Durante a primeira comunhão de Liam, seu pai explode na igreja, gritando ao padre que todos ali tiveram que pedir dinheiro emprestado aos judeus para comprarem as roupas que os filhos estão usando, menciona a ironia que vê no fato de o dinheiro do cristianismo ir para os judeus e diz ainda que Jesus o tem tornado mais pobre, com o dízimo pago à Igreja e as dívidas feitas para as compras de Natal, Páscoa e Pentecostes. Por fim, um coquetel molotov atirado pelos amigos fascistas do pai de Teresa na casa onde esta trabalha, confere definitivamente uma nota trágica à narrativa.

As diferenças econômicas entre os grupos representados no filme, coincidentes muitas vezes (como vimos no parágrafo anterior) com diferentes grupos religiosos, também deixam as suas marcas, trazem as suas conseqüências. A família Sullivan sobrevive com o dinheiro contado. O pai, quando ainda trabalha no estaleiro, chega em casa e dá o dinheiro à esposa, que então o coloca sobre a mesa, na frente dos filhos, e o divide, segundo as poucas destinações que ele terá (aluguel, comida, carvão). Teresa, passando a trabalhar na confortável casa da família judia, se encanta com uma forma diferente de vida. O som do piano executado em casa, as roupas elegantes, a comida farta. Uma das cenas mais tocantes do filme é aquela em que Teresa, confessando-se ao padre, diz que o seu pecado mais grave é desejar ser filha da dona da casa onde trabalha, pois ela é bonita, elegante e fala de forma suave, enquanto sua mãe é feia, se veste mal e está sempre cansada.

Conflitos políticos e divergências ideológicas da época, também permeados pelas perspectivas religiosas e econômicas, ganham representação no filme. Na manchete de um jornal, vemos a notícia da repressão policial a um protesto feito pelos trabalhadores diante do agravamento da situação do desemprego. A polícia também avança para reprimir uma “reunião comunista” realizada pela classe trabalhadora, que procura saídas para a crise que enfrenta. Nesta reunião, alguns católicos presentes procuram exorcizar os “comunistas”, fazendo advertências de que eles destruirão a Igreja. Presente nesta reunião, Con, ao chegar em casa, não esconde do pai a sua simpatia pelas posições socialistas.

As contingências que afetam as personagens fazem com que elas se deparem e sofram com uma série de problemas e conflitos morais. A mãe de Teresa, quando a prepara para ir à entrevista de emprego na casa da família judia, diz à filha que não é para ela lavar privadas na casa dos outros. Mais tarde, em outra cena, vemos Teresa fazer exatamente isto (além de outras tarefas domésticas), resignada e aparentemente tranqüila - e provavelmente sem comentar o fato com a mãe. Quando Teresa leva do trabalho para casa um grande pedaço de carne que iria para o lixo, sua mãe o recusa, dizendo que o pai dela trabalha e que eles não precisam de caridade (ela está prestes a saber que o pai perdeu o emprego). Desempregado, o pai pede à esposa que peça emprestado uma pequena quantia a uma amiga dela para que ele possa pagar uma cerveja a uma pessoa que tem alguma influência nas docas, tornando assim provavelmente mais fácil para ele o acesso a um emprego. A mulher o ouve surpresa e diz que o homem com quem ela casou dissera um dia que jamais faria uma coisa dessas. “Eu menti”, responde ele. A patroa de Teresa tem um amante, fato conhecido logo pela garota, que serve então ao casal de pombo-correio, entregando bilhetes de um para o outro e avisando a patroa quando seu marido pode surpreendê-la numa situação comprometedora (atos que a patroa lhe agradece com dinheiro e roupas). Mas Teresa não está nada confortável com esta situação; ao contrário, sofre bastante com isso; e é este fato confessado ao padre que faz com que ela deixe de trabalhar na casa. Mas a cena mais forte dentre as que retratam os conflitos morais das personagens é aquela em que o pai, atormentado pela culpa, acende um fósforo e queima demoradamente um dedo de sua mão para provar um pouco da dor sentida por Teresa no episódio do coquetel molotov.

Conflitos morais também estão presentes no coração do pequeno Liam, e, muitas vezes, associados à moral católica assimilada em sua escola. O filme realiza uma apresentação extensa dos modos e dos rigores da educação católica na Inglaterra daquela época. Liam está prestes a fazer a sua primeira confissão e a primeira comunhão. Os preparativos para estes eventos ocorrem na sala de aula, através das preleções da professora e do padre sobre o assunto. Eles apresentam e reforçam de forma rígida e atemorizante para os alunos a noção da alma maculada pelo pecado desde o nascimento (o padre repete como um mantra que o pecado “crava mais fundo os pregos nas mãos de Cristo”; que o sofrimento de Cristo aumenta a cada vez que uma criança peca; que aquele que peca queima eternamente no fogo do inferno).

O sentimento de pecado se torna mais forte para Liam quando este se vê capturado pelos mistérios da sexualidade. Na escola, olha um grande livro com reproduções de pinturas clássicas onde se vêem nus femininos. A partir disso e da visão acidental da própria mãe nua no sanitário de sua casa, Liam empreende um projeto de investigação sexual que inclui a visita noturna ao quarto de sua irmã para observar-lhe o corpo sob a camisola. Percebendo os movimentos do garoto, os pais já haviam trocado ele de quarto (ele dormia antes no quarto com a irmã). Tais experiências fazem com que Liam pergunte na escola ao padre: “Como sabemos que um pecado é um pecado?”. “Um pecado é um pecado quando está na sua consciência; quando o perturba”, diz o padre. A pena para o pecado, informa a sua professora, é o fogo eterno do inferno, milhões de vezes mais quente que o da terra. E para tornar mais próxima para os alunos esta noção, prossegue: “Vocês sabem o quanto dói queimar o dedo; agora imaginem as duas mãos, as pernas, o corpo inteiro!”. Esta imagem, que traz a associação entre o pecado e o dedo queimado é materializada próximo ao final do filme, na cena já mencionada do pai queimando seu próprio dedo, punindo-se pelo acidente com Teresa.

Assim, apesar de acompanharmos experiências de outros membros da família Sullivan, a narrativa privilegia a perspectiva de Liam, configurando desta forma um olhar que se realiza a partir do lugar da infância e que apreende como pode as questões que mencionamos: o flagelo econômico que assola a sociedade, o estado de pobreza em sua própria casa, os atritos entre pessoas de diferentes ideologias políticas e crenças religiosas (que terminam atingindo violentamente a sua irmã), os conflitos morais que experiencia a partir de sua educação religiosa e de suas vivências no campo da sexualidade. É uma infância dura a de Liam, refletida talvez na gagueira que apresenta quando fala com outras pessoas. Mas este filme tocante também nos mostra Liam vivendo seus momentos de regozijo e felicidade: a visão dos pais que se abraçam e se beijam, reconciliando-se após uma discussão; a sessão de cinema com a irmã (um filme de western que puderam ver graças a uma freira que deu a Liam uma moeda); a animação dos pais e amigos na rua e os fogos de artifício no céu na noite do ano-novo.

FICHA TÉCNICA
Título: Liam. (Liam, Reino Unido, Alemanha e França, 2000); Direção: Stephen Frears. Roteiro: Jimmy McGovern. Produção executiva: Sally Hibbin, Tessa Ross, David M.Thompson; Música original: John Murphy; Direção de fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Kristina Hetherington. Direção de Arte: Hannah Moseley. Elenco Ian Hart (Pai); Claire Hackett (Mãe) Anthony Borrows (Liam); David Hart (Com), Megan Burns (Teresa), Anne Reid (Sra. Abernathy), Russell Dixon (Padre Ryan), Julia Deakin (Tia Aggie), David Knopov .(Sr. Samuels), Jane Gurnett (Sra. Samuels), Gema Loveday (Jane Samuels).

SUGESTÕES DE LEITURA
HOBSBAWM, Eric J. “Rumo ao abismo econômico” em Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Capitulo 3, p. 90-112.
MCGOVERN, Jimmy. Liam: A Screenplay. Eye, Suffolk: Screenpress Books, 2001 (116 pp.) (Roteiro do filme).
MCKEOWN, Joseph. Back Crack Boy. Hale, 1978. (Fonte literária original que inspirou o roteiro do filme).

SUGESTÕES DE FILMES
(Filmes que abordam universos diegéticos semelhantes ou relacionados)
As cinzas de Ângela(Angela's Ashes, EUA/Irlanda, 1999) 145 minutos, color, 35 mm. Produção: David Brown Productions/United International Pictures,. 1 filme Direção: Alan Parker. Produção: David Brown e James Flynn. Roteiro: Laura Jones e Alan Parker. Intérpretes: Emily Watson; Robert Carlyle; Joe Breen; Ciaran Owens; Michael Legge; Ronnie Masterson e outros.
Billy Elliot. (Billy Elliot, Reino Unido/França,2000). Cia. Produtora: Arts Council of England/Studio Canal (A Canal+ Company)/United International Pictures, 110 minutos, color, 35 mm. Direção: Stephen Daldry. Produção: Charles Brand e Greg Brenman. Roteiro: Lee Hall. Intérpretes: Jamie Bell; Jean Heywood; Jamie Draven; Gary Lewis; Stuart Wells; Mike Elliot e outros.
Agora ou Nunca (All or Nothing, Reino Unido/França, 2002). Cia Produtora: Les Films Alain Sarde/Thin Man Films/Studio Canal, 128 minutos, color, 35 mm. Direção: Mike Leigh. Produção: Simon Channing-Williams e Pierre Edelma. Roteiro: Mike Leigh. Intérpretes: Timothy Spall; Lesley Manville; Alison Garland; James Corden; Ruth Sheen; Marion Bailey e outros.

SITES
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