AI, ou a humanidade artificial (versão em pdf)
Adriano A. Oliveira
Psicólogo e Mestre em Crítica da Literatura e da Cultura pelo Instituto de Letras da UFBa. Leciona no curso de Cinema e Vídeo da Faculdade de Tecnologia e Ciências- FTC.

SINOPSE
Em um futuro indeterminado, onde andróides convivem com os seres humanos, um cientista decide criar um robô capaz de sentir e demonstrar emoções. O casal Harry e Monica Swinton adota David, o primeiro exemplar desse novo tipo de andróide. Após uma série de mal-entendidos, David passa a ser considerado uma ameaça ao filho natural do casal, que decide devolvê-lo à fábrica. Temendo que David seja desmontado, Monica prefere abandoná-lo numa floresta, acompanhado de Ted, um urso de pelúcia robótico. Após enfrentar vários perigos, David encontra um andróide amigo chamado Gigolo Joe, e o trio parte em busca da Fada Azul, personagem de histórias infantis que, segundo David acredita, será capaz de torná-lo um menino de verdade, condição para recuperar o amor de sua mãe. A jornada levará David a encontrar seu criador e a ser considerado o último exemplar da raça humana por seres do futuro.

COMENTÁRIO CRÍTICO
Inteligência Artificial (ou simplesmente AI, sigla da expressão em inglês) é o fruto da parceria entre dois grandes nomes do cinema: o inglês Stanley Kubrick e o americano Steven Spielberg. O filme foi inicialmente um projeto de Kubrick desenvolvido a partir de um conto de Brian Aldiss chamado “Super-brinquedos duram o verão todo” [1] . Kubrick passou mais de uma década supervisionando desenhos de produção e chegou a escrever um esboço de 90 páginas para o roteiro.

O cineasta inglês surpreendeu muitos críticos quando decidiu que Spielberg seria a melhor pessoa para dirigir AI. Tratava-se de uma escolha inusitada, pois eram diretores de estilos completamente diferentes. Spielberg é famoso por filmes onde sempre são dadas respostas apaziguadoras (finais felizes) para as questões humanas levantadas. Kubrick, por sua vez, foi um artista mais inquieto e suas obras em geral formulam muito mais questões do que respostas (o filme 2001 — Uma odisséia no espaço é um exemplo perfeito disso).

Apesar do interesse mútuo no filme, o diretor de ET só assumiu de fato o projeto após a morte de Kubrick, em 1999. Nesse sentido, AI é em grande parte uma homenagem póstuma de Spielberg a Kubrick, cineasta admirado por ele e a quem o cinema em geral deve muito.

AI é um filme de ficção científica sobre um garoto robô capaz de amar. A narrativa se passa num futuro indeterminado, onde a tecnologia permite que os humanos disponham de andróides para execução de trabalhos braçais repetitivos, e também para o lazer. Esses robôs são, entretanto, maquinas incapazes de demonstrar sentimentos e por isso um cientista chamado Professor Hobby (William Hurt) resolve desenvolver um andróide capaz de simular sentimentos de forma tão elaborada que não seria possível distingui-los de sentimentos verdadeiros.

Surge assim David (Haley Joel Osment), um robô em forma de menino que é dado ao casal formado por Monica (Frances O'Connor) e Henry (Sam Robards), cujo filho natural encontra-se em coma sem perspectiva de recuperação há vários anos. Nesse contexto, David foi feito para funcionar como um substituto para o filho perdido do casal. Monica inicialmente reluta em aceitar David, mas termina por ceder às pressões de seu marido (cansado de vê-la sempre deprimida e triste pela perda do filho). Ela finalmente ativa, através de comandos de voz, o “chip de emoções” de David, que a partir de então deixa de agir como uma máquina e passa a se comportar como uma criança de verdade. David agora percebe Monica como sua mãe e passa a amá-la de forma intensa e incondicional.

Todavia, a história não termina neste ponto. De fato, podemos ver AI como uma longa narrativa contada em três partes (atos) bem definidas. A primeira parte trata da aceitação inicial de David como filho de Monica e termina no momento em que ela o abandona na floresta. A segunda parte conta a busca fantasiosa de David pela Fada Azul, personagem das histórias que Monica lia para ele. David quer encontrar a fada para que ela o transforme em um menino de verdade, e desse modo ele acredita que Monica poderá voltar a amá-lo. Em sua jornada cheia de perigos David é acompanhado por um ursinho robótico chamado Ted e por Gigolo Joe (Jude Law), um curioso andróide especializado em serviços sexuais. Esta parte da trama termina no momento em que — após achar o cientista que o criou e descobrir que é um dos muitos exemplares de uma nova série de brinquedos tecnológicos — David mergulha nas águas que inundaram a Nova Iorque do futuro para no fundo do mar encontrar, maravilhado, uma estátua da Fada Azul: antigo remanescente de um parque de diversões agora submerso.

A terceira parte de AI é certamente a mais fantástica, ou melhor, a mais parecida com um conto de fadas futurístico e trágico. David termina ficando preso no fundo do mar diante da estátua, repetindo eternamente para essa fada inerte o pedido de ser transformado em um menino de verdade: um pedido que jamais poderá ser atendido. O tempo passa e séculos depois o mar está congelado. Uma civilização do futuro escava o gelo em busca de vestígios e informações sobre a raça humana, há muito extinta. Esses seres do futuro são a evolução dos andróides construídos pelos homens, mas tornaram-se uma nova “forma de vida”.

David é resgatado por eles de sua prisão gelada e passa a ser considerado como o último dos humanos. Mas o menino robô só deseja reencontrar sua mãe, morta há milhares de anos. Comovidos, os seres decidem atender seu desejo, clonando Monica a partir de um fio de cabelo que ficara preso na pelagem de Ted. Contudo, informam-lhe que devido a limites inexplicáveis da tecnologia ela só poderá permanecer viva durante um único dia: tão logo adormeça ela irá morrer e não poderá ser reconstruída mais uma vez. David aceita a condição e passa o dia mais feliz de sua existência ao lado de uma amorosa mãe em uma réplica perfeita de sua antiga casa. Seu infinito amor encontra afinal correspondência na cópia genética de Monica e, quando ela por fim adormece, David deita-se a seu lado e desiste de continuar vivo. Nesse momento a câmera recua mostrando ambos no mesmo leito, tendo Ted por testemunha. Aparentemente estão dormindo, mas de fato estão mortos.

Não é difícil identificar em AI uma série de referências intertextuais muito claras, ou seja, momentos em que o “texto” do filme parece fazer menção a outros textos bem conhecidos. A mais evidente dessas referências é certamente a influência da história de Pinóquio sobre a trama: David é também um boneco que deseja ser gente e que para tanto precisa da ajuda de uma fada; além disso, Ted, seu companheiro de jornada, tem um papel muito semelhante ao do Grilo Falante. É possível também ver similaridades com um conto de Isaac Asimov chamado “O homem bicentenário”, que apresenta a história de um robô que sobrevive a seus donos e que se humaniza com o passar do tempo (o conto foi adaptado para o cinema em 1999). Outro paralelo interessante seria com o filme Blade Runner (de 1982), onde andróides procuram seu criador para perguntar sobre o sentido de sua existência. De certo modo, tanto Blade Runner quanto AI criticam a noção de que o original (ser humano) seria valorativamente melhor que suas cópias (robôs ou replicantes).

Talvez a referência intertextual em AI menos comentada seja à clássica história de Frankenstein, já que David também é a obra de um cientista louco. Mas a relação entre o filme e o romance de Mary Shelley não é obvia, principalmente porque David, interpretado pelo adorável Haley Joel Osment, parece tudo menos um monstro. A direção de Spielberg contribui bastante para retratar o robô como uma criança delicada e frágil, incompreendida pelos humanos que o cercam, inclusive pelo ser que ele mais ama: Monica. Ela sim se parece com um monstro: uma mãe capaz de abandonar seu filho na floresta. Este ato extremo faz Monica se assemelhar menos a uma mãe e mais a uma tradicional madrasta de contos de fada.

Isso nos faz levantar a pergunta de por que Monica abandona David, se ela efetivamente sofre tanto ao fazê-lo. O filme nos conduz, em um primeiro momento, a entender o gesto dessa mãe como uma defesa do filho verdadeiro, que afinal se recuperou do coma. Após o retorno do menino, uma série de mal-entendidos faz com que Monica perceba David como uma ameaça a seu filho. Entretanto, uma leitura mais atenta nos levaria a perceber que aquilo que realmente afasta Monica de David é, paradoxalmente, o excesso de amor do robô.

O amor de David deveria ser aquilo que o torna humano, mas o sutil do filme é que a intensidade absurda desse sentimento no robô é artificial demais, mecânica demais. É próprio do ser humano vacilar nos sentimentos, mas David é possuído por uma certeza incorruptível, por um amor desmesurado por Monica que não encontra lugar na realidade humana. Na perfeição com que David o ostenta, seu amor só pode existir na fantasia ou na morte — e nesse sentido a cena final de AI se assemelha a uma versão edipianamente do suicídio de Romeu e Julieta. O amor de David por sua mãe é tão desmedido que paradoxalmente é o que o transforma de criança adorável num ser monstruoso como um Frankenstein. É por isso que Monica foge dele.

É tentador imaginar que este seria um viés que ficaria mais evidente se o filme tivesse sido realizado integralmente por Stanley Kubrick. Caso o cineasta inglês tivesse levado seu projeto até o fim, talvez pudéssemos ter mais evidências de que David é, antes de tudo, uma máquina que enlouquece ao tentar, impelida pelos seus criadores, ser mais humana que os humanos (tal qual o computador HAL do filme 2001). Entretanto não foi assim que Kubrick quis e a sua morte prematura impediu qualquer interferência no resultado final do filme. Desse modo, AI apresenta-se hoje, sobretudo, como mais uma eficiente obra de Steven Spielberg sobre a reconstrução/reconquista de um mítico lar perdido.

NOTAS
1- http://www.wired.com/wired/archive/5.01/ffsupertoys_pr.html

FICHA TÉCNICA
Título: AI: Inteligência Artificial. (AI. Artificial Intelligence, EUA, 2001) Duração 121 minutos. Direção: Steven Spielberg Roteiro: Steven Spielberg (baseado em argumento de Ian Watson sobre o conto de Brian Aldiss). Produção: Bonnie Curtis; Jan Harlan; Kathleen Kennedy; Walter F. Parkes; Steven Spielberg. Fotografia: Janusz Kaminski Edição: Michael Kahn Trilha sonora: John Williams. Elenco: Haley Joel Osment (David) Frances O'Connor (Monica Swinton) Sam Robards (Henry Swinton) Jake Thomas (Martin Swinton) Jude Law (Gigolo Joe). William Hurt (Prof. Hobby)

SITES
http://cf.uol.com.br/cinemascopio/criticasf.cfm?CodCritica=656
http://www.imdb.com/title/tt0212720/
http://www.boxofficemojo.com/movies/?id=ai.htm

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