DEUS E O DIABO, A CRIMINALIDADE TOTAL! [1] . (versão em pdf)
Umbelino Brasil
Cineasta. Mestre em Artes pela Escola de Belas da UFBA. Professor da Faculdade de Comunicação da UFBA.

SINOPSE
Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) conta a estória do vaqueiro Manuel e da sua mulher Rosa. Explorado pelo patrão, Manuel reage, instintivamente, à injustiça e à violência e mata o Coronel Moraes, um representante dos latifundiários. Convertido num criminoso comum, o vaqueiro se refugia no misticismo, e a procura de um Bem redentor, torna-se um dos jagunços do beato Sebastião, o deus negro que promete aos devotos a redenção definitiva num dia a vir brevemente e apocalíptico. Manuel entrega-se totalmente às visões do beato, deixando Rosa abandonada, desesperada e ressentida. Sebastião educa Manuel, dizendo que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, reforça o seu refrão proclamando o Bem tradicional com o habitual misticismo religioso. O beato promove saques a lugarejos do sertão brasileiro como parte da sua liturgia, utilizando-se de um palavreado desvairado e subversivo que serve como uma válvula de escape para a inconsciente esperança revolucionária do seu grupo de seguidores, impressionados com a rebeldia escondida em seus discursos monarquista.

Porém, os dias do beato Sebastião e dos seus seguidores estão contados, pois se constituem numa ameaça ao poder dominante – político, militar e religioso -, por isso precisa ser destruído. Entra em cena Antonio das Mortes, matador de cangaceiro e instrumento eficiente da História. Contratado pelo sistema conservador latifundiário e católico reinante no cenário do sertão brasileiro dos anos 30, Antonio das Mortes vai contar com a cumplicidade de Rosa, a esposa esquecida e abandonada. A rivalidade entre Rosa e Sebastião, motivada por uma ligação estabelecida com passional sexualidade, chega ao seu clímax quando Sebastião para purificá-la, obriga ao casal a participar do sacrifício de uma criança, e é furiosamente apunhalado por ela. Antonio das Mortes depois de dizimar o arraial sagrado, encontra o santo Sebastião morto, e poupa Manuel e Rosa.

O cego Júlio, uma personagem que narra parte da estória em versos populares, mostra a Antonio das Mortes o caminho para o extermínio de centenas de fanáticos, e o conduz ao encontro do último cangaceiro. Usando uma serenidade antinatural, o cego Júlio salva Manuel e Rosa, e tem a incumbência de conduzir o casal para o encontro com Corisco (o mais famoso cangaceiro do bando de Lampião, vivendo agora a fase mais desesperada e trágica de sua vida).

Batizado de Satanás pelo Diabo Louro, Manuel passa a fazer parte do resto do bando, e a participar de saques e assassinatos. Rosa, outra vez abandonada, busca consolo com outra personagem deserdada do sertão, Dadá, a mulher de Corisco. O encontro das duas, em situações-limite, cria entre elas um laço estranho, neurótico e apaixonado. Enquanto isso, Manuel preso nas malhas do Bem desafia o seu novo chefe, e a sua mulher Rosa entrega-se a Corisco num desafio ao marido. Enquanto isso, Antonio das Mortes, que havia acabado com o demônio negro do Bem, precisa destruir, também, o anjo louro do Mal para que a História caminhe na direção do triunfo final do homem, sem anjos nem demônios. Diante da paisagem deserta que assistiu à destruição de Canudos, Antonio das Mortes consciência possível do seu tempo e lugar, prevê para o homem nordestino uma guerra maior, no futuro, “um dia vai ter uma guerra nesse sertão... uma guerra sem cegueira de Deus e do Diabo”.

No desfecho da estória, finalmente, Antonio das Mortes encontra o bando em fuga. Fere Dadá, e entra em combate mortal com Corisco, cujo brado final é “mais forte são os poderes do povo”, assinalando, provavelmente, o seu breve encontro com a lucidez. Mais uma vez, Manuel e Rosa sobrevivem, anunciam o desejo de ter um filho como se fosse o “futuro” e correm pelo sertão em busca do mar prometido [2] .

COMENTÁRIO CRÍTICO
Deus e o diabo na terra do sol é um épico do cinema brasileiro que pode ser analisado por diversos ângulos e pontos de vista. É possível observá-lo na ótica da política social, embrenhando-se na literatura que estuda as condições sociais produzidas pela miséria, fome, latifúndio e coronelismo; da religião católica aliada ao sincretismo da afro-brasileira enveredando-se através das figuras míticas do sebastianismo e do Conselheiro; da história caminhando na saga do cangaço, visto pela ótica do banditismo social, e da epopéia histórica da guerra de Canudos; da literatura clássica de Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos; do teatro popular na representação simbólica dos repentistas e cordelistas; da dramaturgia do teatro de vanguarda, ancorando-se em Bertolt Brecht, e por fim o filme pode, ainda, ser analisado através da música, seja na erudição de Heitor Villa-Lobos ou das canções populares que preenchem a sonoridade das feiras nordestinas.

Há, porém, um outro caminho analítico a ser percorrido. A opção é se deter no filme Deus e o diabo, com atenção e minúcia, através do viés da sua revolucionária construção cinematográfica que se caracteriza por meio da inovação, da originalidade e das possibilidades de renovação estética implantada contra os padrões vigentes da cadeia narrativa dos filmes brasileiros do início dos anos 60, meado do século XX.

Deus e o diabo açambarca com a sua narração dois ciclos fundamentais da moderna história do nordeste brasileiro, o do beatismo e o do cangaço, e é uma síntese do cinema novo e moderno brasileiro, pela simples razão do seu autor, Glauber Rocha, ser o representante da expressão máxima da intelectualidade cinemática nacional, e de ter estabelecido um novo padrão para a feitura dos filmes brasileiros, que consistia em transformar a imperfeição na perfeição, com a máxima assertiva de que uma nação subdesenvolvida necessariamente não teria de ter uma arte subdesenvolvida, uma vez que a vanguarda no Terceiro Mundo, certamente não era a mesma do mundo desenvolvido[3] .Deus e o diabo visto de um plano geral é o resultado de uma aglomeração de apropriações, assimilações e adaptações estéticas [4] , a começar pelo gênero western, muito propriamente do seu papel épico-dramático, uma das características do gênero norte-americano. Essa dramaticidade é muita bem exercida pela paisagem, por exemplo, o filme começa com um grande plano, e a aridez da terra sertaneja é ressaltada, se apresentado como um cenário de espessura dramatológica e dentro dele vai se desenrolar o drama mitológico-épico das personagens glauberianas: Manuel, Rosa, Beato Sebastião, Corisco, Dadá e Antonio das Mortes, pontuadas nos acordes narrativos do Cego Júlio.

Brechtianas [5] , elas se movem numa estrutura de ópera popular, estreitando as suas encenações suntuosas e cheias de conflitos - num prólogo, dois atos e o epílogo, pois é assim que autor, Glauber Rocha, organizou narrativamente o seu trabalho -, Manuel personagem inconsciente, pura, martirizada, é submetida tanto ao misticismo quanto ao cangaço, trágico e desnorteado, vai se libertar de forma violenta e desmistificadora correndo até o mar prometido; Rosa, a mulher de Manuel, assiste a sua trajetória com a razão e um olhar crítico, sempre eqüidistante da ação - parecendo o ponto de vista do espectador cético -, na hora do ato, age e reage: mata o beato e se entrega a Corisco, num contraponto duvidoso das opções de Manuel, crucificado entre Deus e o Diabo. Beato Sebastião e Corisco são pólos opostos que se completam num debate dialético, são, sucessivamente, razão, alienação, revolta, moral e luta, na definição ideológica dos seus contextos. Dadá, mulher de Corisco, incorpora, ao mesmo tempo, a solidão, a servidão e a intuição (beirando a consciência, afirmando: Virgolino era grande, mas também ficava pequeno). Antonio das Mortes, matador de cangaceiro, na sua determinação cega de quem rezou por dez igrejas, é o fio contínuo e descontínuo da tragédia grega-sertaneja. Jagunço e pistoleiro solitário, à moda western, Antonio das Mortes conduzido, cegamente, pelo violeiro buñuelesco Júlio, cumpre o destino de equilíbrio da história, aniquilando consecutivamente o Bem e o Mal, incrustado na geografia-física de um mundo que se pretende tornar real [6] .

Deus e o diabo capta com densidade a luz natural do sertão brasileiro, não usa de artifícios comuns a iluminação do cinema de transparência – existe no máximo o uso de rebatedores convencionais -, as suas composições e tonalidades acentuam por momentos o clima documental, por outro o realismo barroco das suas cenas, que é ponto culminante do filme. Há uma beleza indescritível nas tonalidades claras e escuras, sejam as vistas em grandes planos ou em planos aproximados, e a câmera se desloca com uma desenvoltura semelhante ao olhar humano, às vezes fixa, às vezes caminhando em panorâmicas, carrinhos ou zooms, e, é especialmente conduzida na mão [7] .

Por isso, a fotografia do filme é uma composição plástica que age como um reforço a mise-em scène glauberiana de tempo e espaço. Entendidos, aqui, como parte do jogo dramático atmosférico que marca a ruptura entre a mobilidade e a imobilidade das personagens nos seus movimentos geométricos. Por exemplo, o filme não usa o tradicional campo e contracampo [8] , do cinema clássico, opta pela ousadia da câmera caminhar entre as personagens em círculos, ora sendo parte integrante do elenco, ora mantendo a distância visual de observadora do espetáculo.

A partitura sinfônica de Deus e o Diabo é usada com o propósito de colocar harmonicamente os elementos fílmicos em destaque, funciona com “vida própria”, já que em determinados momentos da ação dramática, ela precede à imagem e ao seu dinamismo, e na construção do drama é conduzida, rigorosamente, numa cadência visual e auditiva de extrema coerência. Por sua vez, os diálogos funcionam como uma síntese que reforça a ação, não só pela natureza gramatical, mas, sobretudo, pela relação emocional proporcionada às personagens, e mais, ainda, por funcionar no sentido de ajustar à condição realista e não-realista contida filme. Enfim, a estrutura rítmica e a arrítmica do filme, põe todos seus movimentos em constante choque, seja jogando a imobilidade contra o movimento geométrico, ou vice-versa, reinando um “caos” controlado e descontrolado do debate imagético.

Deus e o diabo na terra do sol é um filme que quebrou, definitivamente, a forma do olhar do cinema brasileiro, pois tornou a imperfeição estética em perfeição. Isso porque o seu autor conseguiu atingir a correspondência entre a teoria e a prática, e fez da sua obra, uma fusão do pensamento proposto por sua vida e o resultado almejado por um artista com o propósito de chegar a arte em sua plenitude [9] .

NOTAS
1- “Houve época que Glauber Rocha tinha a mania da expressão criminalidade total!, que gritava como leitmotiv, nas rodas de amigos, cartas e escritos pessoais. Não sendo louco seu dono, tomam-se essas palavras com certa surpresa e quase em vão busca-se uma causa que as justifique. Dentro da retórica baiana, o ato gratuito é um refrão que por assim dizer tempera intervenções. A expressão-chave criminalidade total! é um típico ato gratuito, de tipo diferente do padrão sartreano. Diria, por sua importância, trata-se de uma ato semi-gratuito”. Ver David Neves, “Uma fecunda criminalidade” em Deus o diabo na terra do sol, Glauber Rocha, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 195.

2- Para uma compreensão mais ampla do enredo do filme, consulte “Dialética da Violência” de Luiz Carlos Maciel em Glauber Rocha, Deus o diabo na terra do sol, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, 200-223 pp.

3- Ver Glauber Rocha “O cinema novo e a aventura da criação (A Zuenir Viana)” em Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004, 127-150 pp.

4- Existem apropriações, assimilações e adaptações estéticas feitas por Glauber em sua obra, é marcante em Deus e o diabo a presença de traços do moderno cinema, do western americano, do neo-realismo italiano, do surrealismo, da vanguarda russa, e do teatro Kabuki traduzido nos filmes de Kurosawa, é especificamente marcante o diálogo de Glauber com os autores John Ford, Serge Eisenstein, Akira Kurusowa, Roberto Rosselini, Luchino Visconti e Luís Buñuel. Essas “conversas e leituras” foram adequadas pelo autor e transformadas endogenamente em seus filmes. No texto escrito, fico detido e sou explicito com a presença marcante do gênero americano do western.

5- Glauber é enfático quanto a assimilação dos métodos de dramaturgia, absorveu Brecht, Stanislavisk e Meyerhold. Além de ser brechthiano, utilizou-se do método de Stanislavisky, particularmente na construção da personagem do Manuel (interpretado pro Geraldo Del Rey).

6- Para um entendimento mais amplo das personagens e da estrutura narrativa do filme, consultar Paulo Perdigão “Opinião – Ficha Filmográfica” em Deus e o diabo na terra do Sol em Glauber Rocha, Deus o diabo na terra do sol, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, pp 151-172.

7- Não se utilizava naquela época o equipamento steadycam, uma câmera de cinema agregada a um motor hidráulico que proporciona estabilidade, evitando tropeços, na composição das cenas.

8- Campo filmado na direção oposta à do campo precedente (p.ex., o personagem que, no campo, se encontra de frente para a câmera, é visto de costas no contracampo); chamado, também, de contraplano.

9- Ver Walter da Silveira, “Um filme em transição” em Glauber Rocha, Deus o diabo na terra do sol, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, pp. 173-182.

 



FICHA TÉCNICA
Título: Deus e o diabo na Terra do sol (Brasil, 1964). Preto e Branco; 125 minutos. Direção e Argumento:  Glauber Rocha. Produtor Luiz Augusto Mendes. Produtores Associados: Jarbas Barbosa e Glauber Rocha. Diretor de Produção Agnaldo Siri Azevedo. Roteiro:  Glauber Rocha e Walter Lima Júnior. Diálogos: Glauber Rocha e Paulo Gil Soares. Diretor de Fotografia e Câmera: Waldemar Lima. Montagem: Rafael Valverde. Música Heitor Villa-Lobos. Canções: Sergio Ricardo e Glauber Rocha. Figurino: Paulo Gil Soares. Elenco Geraldo Del Rey (Manuel), Ioná Magalhães (Rosa), Maurício do Valle (Antônio das Mortes), Corisco (Othon Bastos), Dadá (Sonia dos Humildes) e Lídio Silva (Beato Sebastião), Marrom (Cego Júlio) Antonio Pinto (Coronel), João Gama (Padre) Milton Roda (Coronel Moraes).

SUGESTÕES DE LEITURA
AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol – a linha reta, o melaço de cana e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
BUENO, Alexei, Glauber Rocha – mais fortes são os poderes do povo. Rio de Janeiro: Manati Produções Editoriais, 2003
MONZANI, Josette. Gênese de Deus e o diabo na terra do sol, São Paulo: Annablume (Fapesp, Ufba, Fundação Gregório de Mattos), 2005.
ROCHA, Glauber et alli. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
ROCHA, Glauber Rocha. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
XAVIER, Ismail. SertãoMar – Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense (Embrafilme e Secretaria de Cultura/MEC), 1983.