O segredo de Cidade de Deus (versão em pdf)
Marcos Pierry

Mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Professor do Curso de Cinema e Vídeo da Faculdade de Tecnologia e Ciências.

SINOPSE
O principal personagem do filme Cidade de Deus não é uma pessoa. O verdadeiro protagonista é o lugar. Cidade de Deus é uma favela que surgiu nos anos 60, e se tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80.

Para contar a estória deste lugar, o filme narra a vida de diversos personagens, todos vistos sob o ponto de vista  do narrador, Buscapé.

Este, um menino pobre, negro, muito sensível e bastante amedrontado com a idéia de se tornar um bandido; mas também, inteligente suficientemente para se resignar com trabalhos quase escravos.

Buscapé cresceu num ambiente bastante violento. Apesar de sentir que todas as chances estavam contra ele, descobre que pode ver a vida com outros olhos: os de um artista. Acidentalmente, torna-se fotógrafo profissional, o que foi sua libertação.

Buscapé não é o verdadeiro protagonista do filme: não é o único que faz a estória acontecer; não é o único que determina os fatos principais. No entanto, não somente sua vida está ligada com os acontecimentos da estória, mas também, é através da sua perspectiva que entendemos a humanidade existente em um mundo aparentemente condenado por uma violência infinita [1] .

COMENTÁRIO CRÍTICO

Nenhum outro longa-metragem causou tanta polêmica no Brasil desde o início da chamada fase da retomada. Cidade de Deus tornou-se peça marcante no cinema brasileiro do período por conta da escolha do argumento, de forte nexo com um tema contemporâneo, extraído de fatos verídicos, da ousadia da linguagem utilizada para converter em imagens a história de gangues violentas em disputa pelo controle do tráfico de drogas em uma favela do Rio de Janeiro e do conseqüente sucesso de público. Foram 3,2 milhões de espectadores, sem incluir a audiência atraída após as indicações ao Oscar 2004. E lembre-se que o filme foi liberado apenas para maiores de 16 anos. A crítica especializada também se mobilizou como há tempos não se via no País. Não era para menos. Quando um filme nacional havia dialogado com tamanha desenvoltura com o cinema de gêneros de matriz hollywoodiana? Talvez a única alternativa comparável seja um Hector Babenco longínquo, de Pixote ou Lúcio Flavio, filmes ainda assim tímidos diante da radicalidade de algumas seqüências de violência explícita apresentadas na adaptação de Fernando Meirelles e Kátia Lund para o romance homônimo de Paulo Lins. Deve haver um limite para encenar-se uma execução a balas na telona? Quem o define? O governo, a sociedade ou os próprios realizadores? São perguntas que rondam o cinema desde os tempos de Bonnie e Clyde. 

É preciso investigar por que o filme transcendeu o efeito blockbuster e se consolidou como um emblema da cultura brasileira nos primeiros anos da virada para o século 21. Por trás do debate em que se analisava a validade de seus recursos expressivos, houve uma meticulosa estratégia que precedeu a chegada do filme às salas de exibição e facilitou a Cidade de Deus posicionar-se como a crista da onda na variada pauta midiática que expôs e, de certo modo, provocou a reflexão sobre ética, realidade nacional e estetização da violência na criação artística durante o biênio 2002/2003.

O longa-metragem foi entronizado como filme-acontecimento mesmo antes de ser lançado no circuito comercial. Alguns fatos certamente fomentaram a curiosidade em torno de uma arrojada produção made in Brasil, orçada em 3,3 milhões de dólares, que, antes da estréia nacional, teve sua exibição em diversos países negociada com sucesso no Festival de Cannes. O uso de atores não profissionais, por exemplo, foi noticiado com destaque pela imprensa desde o início do processo. Muitos dos jovens que estão na tela são ou eram moradores de Cidade de Deus. O elenco amador passou por uma intensa maratona de oficinas de interpretação, conduzidas por Fátima Toledo, preparadora de atores que trabalhara em Pixote. Então logo se pleiteou a autenticidade da dramaturgia a partir desse elemento, e não apenas a partir da origem do roteiro – um livro escrito por um morador, ou seja, o ponto de vista interno que o filme preserva e até potencializa. Palace II, exibido meses antes na TV Globo, também ajudou. Veiculado em rede nacional, o curta-metragem fora realizado basicamente com a mesma equipe que rodaria Cidade de Deus, inclusive o elenco. Além de estudo para as soluções audiovisuais que marcariam a fatura estética do longa, o produto televisivo foi ao mesmo tempo uma eficiente vitrine e teste de público para o tema e a linguagem adotada. Embora não se negue o investimento artístico dessas empreitadas, também se tornou notável seu potencial de apelo para as editorias de cultura.
Em termos da conjuntura encontrada no meio cinematográfico brasileiro, vale destacar alguns aspectos. Contribuíram para o grande interesse mobilizado em torno de Cidade de Deus três fatores: primeiro, o lançamento na mesma época de outros títulos nacionais que tematizavam, de formas distintas, a favela, a criminalidade, os excluídos, o mundo da periferia, a realidade social que corre à margem nas grandes cidades. Entre os quais, O Invasor, de Beto Brant, Uma Onda no Ar, de Helvécio Ratton, Seja o que Deus Quiser, de Murilo Salles, Carandiru, de Hector Babenco, O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, e Ônibus 174, de José Padilha. Fora outros títulos, como O Príncipe, de Ugo Giorgetti, que, pelo ponto de vista adotado (um pequeno burguês volta de longa temporada na França e, deslocado, lança um olhar desiludido às relações pessoais e ao ambiente de sua classe social), permite análises e comparações promissoras. A depender do critério de análise, outros títulos poderiam ser listados, a exemplo de Deus É Brasileiro, de Carlos Diegues, Dois Perdidos numa Noite Suja, de José Joffily, e Madame Satã, de Karim Ainouz.

Segundo motivo. Com Cidade de Deus ainda em cartaz, uma onda de revival Glauber Rocha ocupou a mídia, ocasionada principalmente pela estréia do documentário Rocha que Voa, de Eryk Rocha, e pelo lançamento de uma nova e caprichada edição de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, o mais importante dos livros escritos por Glauber, em que o cineasta repassa a história do cinema brasileiro de modo original, propondo ácidas revisões em torno de filmes e posicionamentos de outros diretores e de seu próprio currículo. Rapidamente passou-se a tomar como referência nas discussões sobre Cidade de Deus a Estética da Fome, manifesto que Glauber lançara em 1965, na Itália, uma espécie de súmula dos pressupostos cinemanovistas sobre como deveria ser a representação da realidade social brasileira nas telas e na arte em geral. “Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos”, vocifera o cineasta baiano para observar mais adiante que “o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração”. Glauber propõe que as supostas deficiências técnico-financeiras do cinema do terceiro mundo sejam incorporadas como expressão estética e defende a realização de filmes feios como uma alternativa à nostalgia do primitivismo presente no olhar europeu.

O terceiro fator seria o forte apelo que a linguagem documental e as ficções baseadas em fatos reais obtiveram período. Havia uma fome de verdade que mesmo hoje ainda não se consumou por completo e pode ser considerada um atributo da filmografia e do menu televisivo contemporâneo no Brasil. Não se esqueça: parte dos filmes citados dois parágrafos atrás são documentários. Outros, baseados em fatos reais. Caso de Cidade de Deus. A tevê faz com que o espectador conviva com a criminalidade em diversas modalidades de expressão – de Falcão Meninos do Tráfico (exibido no dominical Fantástico, da Globo, em março de 2006) ao remoto Aqui Agora (SBT, início dos anos 90), o jornalismo verdade foi sempre uma pedida desde o início da retomadado cinema nacional, há pouco mais de dez anos.

Como contrabalanço ao quadro de recepção tão oportuno, havia a carreira do diretor Fernando Meirelles, vindo do segmento publicitário e, portanto, assinalada com um pecado de origem letal num ambiente em que a crítica era e é exercida, em grande parte, por profissionais que manifestam bem mais que afinidade com as soluções propostas pelo cinema novo. Tornou-se, assim, antológica a expressão cosmética da fome, colocada por Ivana Bentes para caracterizar a banalização da miséria em filmes, lançados a partir da segunda metade dos anos 90, que retomavam personagens, histórias e a paisagem de dois cenários dos mais privilegiados pela geração do cinema novo: o sertão e a favela. “O cinema brasileiro dos anos 90 vai mudar radicalmente de discurso diante desses territórios da pobreza e seus personagens, com filmes que transformam o sertão e a favela em ‘jardins exóticos’ ou museus da História”, escreve a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro no Jornal do Brasil de 8 de julho de 2001. O mesmo JB publica, dois dias depois, uma resposta de Mariza Leão (Condenados em nome de Glauber?) à avaliação de Ivana de Bentes, mas o fato é que o artigo de Ivana (‘Cosmética da Fome’ marca cinema do país) acabou por obter um alcance bem maior do que a réplica da produtora de Guerra de Canudos.

Em setembro de 2002, com Cidade de Deus lançado e já com a marca de mais de um milhão de espectadores, o crítico Luiz Carlos Merten, do jornal O Estado de S. Paulo, organiza o ciclo Cosmética versus Estética, no Espaço Unibanco de São Paulo, onde cineastas e pesquisadores de várias colorações debateram o tema por três dias seguidos, à luz do estudo de caso do filme de Meirelles e Lund. Além do diretor e cabeças de equipe do filme, compareceram a própria Ivana, o crítico Ismail Xavier, o diretor de fotografia Walter Carvalho, os cineastas Fábio Barreto (substituindo o pai, Luiz Carlos Barreto) e Hector Babenco, entre outros. Na abertura do evento, em 16 de setembro, Meirelles foi enfático em suas observações, colocando seu filme como instrumento efetivo de transformação social e julgando severamente a fatura glauberiana: “(em Cidade de Deus) Driblei todas as oportunidades que tive de fazer show de violência (...) Dormi em muitos filmes do Glauber. Sem densidade psicológica, humana, os personagens são autofalantes de uma idéia.” Instada a comentar a fala de Meirelles, Ivana Bentes respondeu: “A besteira é tão grande que ele não merece resposta.” Em que pesem as paixões e arrivismos, que certamente comprometeram a intervenção de todos os participantes, restou o efeito em cascata do conclave ao mobilizar durante meses crítica especializada, pesquisadores acadêmicos e, principalmente, o público.

Passados quatro anos do lançamento, após as indicações ao Oscar, pode-se dizer que o sucesso de mercado do filme e de seu diretor foram capazes de minimizar as polêmicas em torno de Cidade de Deus, permitindo assim uma decantação dos temas embutidos em sua trama e uma avaliação de como tais assuntos, enquanto expressão de uma realidade verídica, são trabalhados segundo determinados critérios artísticos / cinematográficos. Os itens listados a seguir são apenas chaves de entrada para uma possível discussão em torno de aspectos do filme que mais chamaram a atenção:

1. Violência como um mal inato, endógeno e generalizado no microcosmo da favela;
2. A complexa organização montada para o tráfico de drogas, com direito a plano de carreira (olheiro, vapor, soldado, gerente etc.);
3. A mídia como instrumento de reconhecimento da existência e da autoridade do criminoso (questão já tratada, por exemplo, pelo cinema marginal nos anos 60/70);
4. Possibilidade de ascensão do suburbano ocorre na trama com pouca adesão à realidade (saga de Buscapé, personagem amoral, é romantizada);
5. Pesado esquema de corrupção policial: venda de armas, proteção a bandidos, execuções sumárias;
6. Relação de favelados com os cocotas se dá de forma inconseqüente (roupas, música, droga, praia e relacionamentos amorosos que se frustram);
7. Fatalismo deixa o problema colocado sem saída (Mané Galinha avisa que a guerra vai continuar; meninos da turma da caixa baixa matam Zé Pequeno e assume o comando);
8. Representação do negro. Apesar de criar uma estética da periferia, ter um saldo social positivo e emancipar a vida de vários artistas (Seu Jorge, Leandro Firmino da Hora, Darlan Cunha, Alexandre Rodrigues etc.), o efeito de denúncia, na prática, foi logo neutralizado pela indústria cultural. Seu Jorge é hoje um cantor de baladas românticas, Alexandre faz um negro alforriado e cordial, escada de Danton Mello em Sinhá Moça, a novela das seis global em cartaz de março a outubro de 2006. E a cena do pai de santo é completamente sem consistência, ainda mais para um filme que a todo momento postula o embate com o real.

O tempo ajuda a perceber, sem o risco de partidarismos, a dimensão do impacto de Cidade de Deus. Impacto que então não mais esconde seus segredos e faz lembrar algo. Uma dramaturgia, a partir do modo como que se articula, pode exprimir simpatia (em última instância, ideologia) pelo universo retratado. Talvez onde se busque reflexão para uma possível consciência dos problemas sociais apontados haja apenas uma hiper-estimulação sensorial. E a overdose de efeitos (fotografia, movimentação de câmera, trilha musical, montagem) não costuma ter sempre a cobiçada longevidade das obras-primas. Como se pode observar, o menu temático erigido a partir do filme de Meirelles e Lund é bastante variado. Faz pensar sobre a viabilidade de uma ética das imagens no mundo contemporâneo.

NOTAS
1- Reproduzido de http: //cidadededeus.globo.com

FICHA TÉCNICA
Título: Cidade de Deus. (Brasil, 2002). Duração 130min. Cor. Direção: Fernando Meirelles Co-Direção: Kátia Lund. Roteiro: Braulio Mantovani. Direção de Fotografia: César Charlone. Montagem: Daniel Rezende. Direção de Arte: Tulé Peake. Música Original: Antonio Pinto e Ed Côrtes. Produção: Andrea Barata Ribeiro e Maurício Andrade Ramos. Co-Produtores: Walter Salles, Donald K. Ranvaud, Daniel Filho, Hank Levine, Marc Beauchamps, Vincent Maraval,  Juliette Renaud. Produção executiva: Elisa Tolomelli. Elenco: Matheus Nachtergaele (Sandro Cenoura), Alexandre Rodrigues (Busca Pé), Leandro Firmino da Hora (Zé Pequeno), Phellipe Haagensen (Bené), Jonathan Haagensen (Cabeleira), Douglas Silva (Dadinho), Daniel Zettel (Tiago), Seu Jorge (Mané Galinha), Alice Braga (Angélica).

SUGESTÕES DE LEITURA
BUTCHER, Pedro. Cinema Brasileiro Hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo – Um Balanço Crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
SARAIVA, Leandro Rocha. “Cidade de Deus: maestria e contradições em Sinopse Revista de Cinema, nº. 9. São Paulo: Cinusp, agosto/2002, p. 12-15.
VIEIRA, Else R.P.(org.). City of God in Several Voices – Brazilian Social Cinema as Action. Nottingham/Inglaterra: CCC Press, 2005.

SITES

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp1109200293.htm
(Texto de Eugênio Bucci), acessado em 20/10/2006.
http://www.contracampo.com.br/criticas/cidadededeus.htm
(Texto de Felipe Bragança), acessado em 20/10/2006.